Humberto Gessinger costuma ser acusado – dentre muitas outras coisas – de um excesso de formalismo em suas composições. Desde dividir suas músicas em várias partes até intertextualidades temáticas e sonoras, Gessinger é do tipo que perde o amigo, mas não perde a piada, ou mesmo “sacrifica” o resultado, mas nunca a forma.
É isso que explica, por exemplo, o fato de sua carreira solo se apresentar em trio, um formato muito pouco usual no rock – bandas como Paralamas do Sucesso e Green Day são trios apenas no CNPJ, no palco estão frequentemente acompanhados de Big Bands de dar inveja ao Ray Coniff.
Em uma carreira solo, então, faria menos sentido ainda impor-se uma formação que traz tantos desafios na execução de suas músicas, mas Humberto Gessinger parece mais preocupado em como toca do que em o que toca.
Essa escolha pelo trio em sua carreira solo traz também uma dicotomia interessante: enquanto sua empreitada se chamava Engenheiros do Hawaii, a banda foi um trio apenas até o espetacular Filmes de Guerra, Canções de Amor, de 1994. Com a ruidosa saída de Augustinho Licks, guitarrista da formação clássica da banda (apelidada pelos fãs de GLM), os Engenheiros já foram um quinteto, quarteto e os mais diversos tetos, mas nunca mais um trio, tendo Gessinger atuado como trio apenas nos momentos em que descansou a marca: nos discos Humberto Gessinger Trio, de 1996, e voltado ao formato em sua carreira solo, na estrada desde 2013 quando lançou Insular. Esse cenário demonstra de forma intrincada que, apesar das formações posteriores serem algum tipo de falsificação da banda, sua essência sempre esteve preservada pois Humberto Gessinger é o Engenheiros do Hawaii.
Em Quatro cantos de um mundo redondo, terceiro disco solo (ou vigésimo primeiro se considerarmos todas as encarnações dos Engenheiros), temos um microcosmo desses quase 40 anos de carreira condensados em 10 faixas que – como não poderia deixar de ser – estão agrupadas por formatos (ou formações), formalizados por Humberto Gessinger em EPs disponibilizados como prévia ao disco, publicado na íntegra no fim de setembro deste ano.
Faixa a Faixa, banda a banda
Trio “Elétrico”
Os Engenheiros raiz estão representados por três faixas executadas em trio “elétrico”, a formação oficial de sua carreira solo, com Felipe Rotta na guitarra e Rafael Bisogno na bateria, que o acompanha na maior parte dos shows.
Em “Espanto” (faixa de abertura do disco), Humberto Gessinger digressiona sobre a passagem do tempo, aqueles que desejam negá-lo e o que deixamos pelo caminho nesse processo. O baixo sobressai aos demais instrumentos com uma marcação bem forte, com a guitarra aparecendo mais como uma moldura do refrão.
“Delta dos rios” traz para o disco mais uma característica bastante representativa da carreira de Gessinger: um misto de tetricidade e auto-sabotagem. A música tem uma melodia bastante assobiável, possivelmente fadada ao sucesso nas mãos de um letrista mais disposto a concessões, mas que recebeu um anti-refrão Gessingeriano típico. Apenas alguém que recebeu um disco de platina por O Papa é Pop teria a audácia de escrever os versos “Será ouro de tolo, será um Touro Miúra” para sua música mais promissora. Entre sombras e escombros, a música sobrevive bem com seus versos que parecem retratar algo que aparece com frequência na temática da banda: o otimismo imprudente e a fé no improvável. Deve encontrar guarida no repertório, talvez em um medley com faixas como “Pose”, “Dom Quixote” ou “A Onda”.
A última das músicas gravadas pelo trio “elétrico” é “Vaga Semelhança”, um pop-rock com tempero progressivo, sobretudo na linha de sintetizador que Gessinger toca em conjunto com baixo: 4 instrumentos tocados por um trio. Por que não ter mais um músico nessa faixa? Porque a forma com que ela foi gravada é mais importante que um fonograma a mais ou menos. A letra é coesa, com uma estrutura que se repete nos dois versos das partes e na ponte final. Uma das melhores do disco, caberia em qualquer disco da fase áurea dos Engenheiros.
Trio Acústico
Humberto Gessinger passou quase 10 anos tocando seguidamente em projetos acústicos, excursionando com as tours dos discos Acústico MTV (2004), Novos Horizontes (2007) e com o duo Pouca Vogal (2009). As guitarras só voltaram em 2013, com o primeiro disco solo Insular, de 2013, mas a fase acústica manteve-se representada em EPs e singles desde então.
Dessa vez, a formação, que conta com Nando Peters no contrabaixo e Paulinho Goulart na sanfona, ou gaita como é conhecida na música gaúcha, é a melhor formação do disco, apesar de não ser a principal. Gessinger costuma levar essa formação para shows mais intimistas em algumas (privilegiadas) praças. Se tiver a sorte de topar com essa oportunidade, a sugestão deste é que não a deixe passar. Voltando ao disco, aqui temos mais um bloco com 3 músicas.
A primeira delas é “A Noite Inteira”, música composta originalmente para O Papa é Pop (1990), mas que acabou não sendo aproveitada. A música já era conhecida do público mais hardcore da banda, mas de uma forma inusitada: gravada pelo saudoso Serguei em seu autointitulado disco de 1991. Apesar de já conhecer a música, até a entrada dela no repertório de Gessinger, pouco se sabia sobre sua composição. Trata-se um pseudo blues que combinava bastante com Serguei, mas não muito com Gessinger, o que deixou o público ansioso para escutá-la. Para o disco, ela recebeu um arranjo com viola caipira que remete a um Bluegrass abrasileirado.
“Mais que Sombras” é uma grata surpresa, sendo, possivelmente, a melhor música de Gessinger em 15 anos. Escrita em parceria com Nando Peters, ela começa trazendo um estranhamento ao ter seus primeiros versos cantados em um registro vocal que eu não me lembro de já ter sido usado por Gessinger. A letra é direta, compondo imagens que retratam a vida contemporânea como uma distopia e um refrão urgente buscando trazer de volta o ouvinte para onde, segundo Gessinger, nos distanciamos.
“Começa Tudo Outra Vez” é a única faixa dispensável do disco. A música é uma parceria com Roberta Campos e traz uma temática muito diferente para a discografia do Humberto, o que por si só não é ruim – a música, ao contrário, é um pop adulto excelente, na medida para rádios, como Nova Brasil FM, entre outras. O problema é que seu arranjo está muito parecido com a gravação original, um dueto lançado no disco de 2021 de Roberta Campos, O Amor Liberta. Talvez se tivesse sido gravada por outra das formações do álbum, ou se a sanfona de Paulinho Goulart conduzisse o arranjo desde o início, a faixa poderia ter contribuído mais com o disco. De todo modo, não faz mal.
Quarteto
Para duas músicas, Gessinger escalou um quarteto com os músicos Luigi Viera (bateria) e Diego Dias (teclado), integrantes da banda gaúcha Vera Loca, e o virtuoso baixista solo Fernando Petry. Nessa formação, Gessinger assume uma guitarra de doze cordas. Apesar da associação com o baixo, Humberto foi responsável pela guitarra em 3 discos dos Engenheiros (Longe Demais das Capitais, de 1986, Surfando no Karmas & DNA, de 2002, e Dançando no Campo Minado, de 2003). Com uma pegada mais de banda, essa formação contribuiu com duas faixas para o disco.
“Toxina” é uma música que fala sobre a cultura Troll em meio ao fenômeno da polarização. Numa deliciosa ironia, acabou dividindo o público em duas facções, tendo como objeto de contenda a disputa sobre quem seria o, muitas aspas, “homenageado” pela letra: Carlos Maltz, baterista original da banda, ou Régis Tadeu, crítico musical. Ainda que a letra caiba como uma luva ao filósofo da arte e colaborador de veículos como Super Pop e Programa Raul Gil, acredito que alguns elementos apontam para que o agraciado seja mesmo o proscrito baterista e hoje tarólogo e astrólogo Olavista. Em sua introdução, a melodia faz uma breve referência a uma milonga, presente na faixa título do primeiro LP da banda, o já citado Longe Demais das Capitais e, em seguida, se resolve como um groove sincopado ao máximo de swing que 4 gaúchos podem alcançar (muito pouco, se estiver curioso). A música é muito boa e os possíveis alvos sentiram o golpe: Carlos Maltz está há semanas postando em seu instagram que “nada é mais tóxico que chamar um irmão em Cristo de tóxico” enquanto Regis está distribuindo gentilezas no X-Twitter para aqueles que o apontam como destinatário da missiva.
Apesar da nobre intenção – comemorar o fim do governo Bolsonaro – “Um Brinde” não convence. A música é um reggae preguiçoso, com uma letra pouco inspirada e, em alguns momentos, beirando o cringe (“Um brinde/Ao fim de uma era/Bora galera/A espera acabou”). Na torcida para que a Deck resista a tentação de lançá-la como música de trabalho. Como tudo tem um lado bom, a música serviu para irritar a facção bolsonarista entre os fãs dos Engenheiros.
Formação sem formação
Mais duas músicas foram gravadas fora das três formações a cima. Em uma delas, temos a participação de Duca Leindecker, fundador da Cidadão Quem e par de Humberto no power duo Pouca Vogal, além da participação especial do guitarrista Marcelo Corsetti. Já a segunda canção dessa (a)formação foi gravada sozinha por Gessinger. As duas músicas têm em comum serem as únicas gravadas com o uso de Overdubs, que é quando um mesmo músico grava várias faixas para uma mesma música.
“A.E.I.O.U.” é uma regravação em homenagem a Bebeto Alves, ídolo de adolescência de Humberto Gessinger e parceiro de composição nos últimos anos, quando escreveram e gravaram juntos “Ponte Para o Dia” e “Essas Vidas da Gente”, do disco Insular (2013), “Milonga Orientao”, em Insular ao Vivo (2014) e “Outronada”, gravada por Bebeto em seu disco Canção Contaminada (2018) e regravada por Humberto em seu disco anterior, Não Vejo a Hora (2019). Bebeto é uma figura seminal na música urbana gaúcha como participante da coletânea e coletivo Paralelo 30. Humberto já declarou em diversas entrevistas a influência dessa geração de artistas que se instalou em Porto Alegre no fim da década de 70, como Bebeto e Musical Saracura. A música é muito bonita, com a letra trazendo uma reflexão sobre a necessidade da manutenção de uma certa pureza e simplicidade nos nossos sentimentos. A gravação conta com a participação de Duca e Marcelo Corsetti, além de Gessinger em pelo menos 3 instrumentos diferentes. Bebeto Alves faleceu em 2022.
Já “Fevereiro 13” é, de acordo com Gessinger, seu presente de casamento para sua filha Clara, acompanhada pelos fãs da banda desde que inspirou a composição e participou do clipe de “Parabólica”, em 1993, com menos de um ano de idade. A música foi gravada por Gessinger sozinho em agosto, quando esteve em Estocolmo para o matrimônio de Clara, que vive lá com seu marido. A gravação aconteceu no lendário Atlantis (Metronome) Studio, onde a nata do pop sueco das décadas de 1970 e 1980 fizeram suas primeiras gravações, em especial Abba e Roxette, mas sua câmara de eco e acústica impecável atraíram também grandes artistas do mundo todo, como Elvis Costello e Quincy Jones.
Em seu instagram, Humberto brincou que cruzou o oceano para gravar com o mesmo microfone que grava em casa, mas a verdade é que além dos atributos técnicos, a mudança do estúdio pode trazer uma mística diferente para a gravação. A canção é bonita e singela, contando com um violão de 12 cordas, baixo fretless e um órgão Hammond ligado a uma caixa Leslie, tempero setentista que tira proveito justamente da câmara de eco do estúdio.
Esse é o melhor dos três discos solos de Gessinger e sua economia – 10 canções – deixam no ar a sensação de que poderiam ter mais duas ou três canções, desde que elas estivessem no nível das demais. Por outro lado, Gessinger é um compositor de muito sucesso, com mais de 20 discos e 40 anos de estrada, é difícil projetar quais dessas canções encontrará espaço no setlist cada vez mais apertado de seus shows, e talvez essa seja a chave para entendermos o porquê dessa determinação em encaixar as canções em suas formalidades.
Gessinger poderia excursionar por mais 20 anos Brasil afora sem elas, e talvez tivesse uma carreira inteira com metade do que já fez, então estabelecer certas limitações ao seu repertório pode ser uma forma de mantê-lo entretido e desafiado. Sorte a nossa, pois além dessa boa coleção de canções, Gessinger e seus trios estão na estrada com shows que não deixam espaço para saudosismos vazios.
Quem assina esta resenha é Thiago Roberto de Freitas
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