A paternidade é um tema recorrente no audiovisual e já produziu grandes clássicos pautados nas relações complicadas entre pais e filhos. Nos últimos anos, tem se tornado cada vez mais comuns as histórias de pais solteiros e relutantes, que com muita frequência abordam a relação entre esses indivíduos e suas filhas. Exemplos não faltam: desde os mais fantasiosos, como a adaptação para a televisão do jogo de videogame The Last of Us; até as mais calcadas na realidade, como o jovem clássico Aftersun, celebrado longa da diretora Charlotte Wells.
O cinema brasileiro, é claro, não fica de fora, e toca na delicada discussão mais uma vez no novo filme do diretor cearense Pedro Diógenes. Mas será que ainda é possível acrescentar algo de novo em uma temática tão constantemente discutida?
Um filme sobre traumas
A Filha do Palhaço conta a história de Joana (Lis Sutter), uma adolescente de 14 anos que não sabe muito sobre seu pai, Renato (Demick Lopes), que abandonou o lar repentinamente quando a garota ainda era muito jovem. Devido a circunstâncias emergenciais, a adolescente é obrigada a passar uma semana na companhia de Renato, e acompanhá-lo em sua rotina noturna de apresentações em festas e casas de comédia onde ele interpreta a personagem Silvanelly.
A relação entre os dois personagens, claro, é muito complicada. A revolta de Joana, potencializada pelos dilemas e percalços da adolescência, é potencializada pelo abandono paterno, que a personagem constante demonstra nunca ter perdoado. Renato, por sua vez, se envergonha profundamente das decisões que tomou no passado, quando deixou a família por um motivo que evita discutir, mas que não tarda em surgir nas inúmeras discussões com a filha.
A direção de Pedro Diógenes é certeira ao explorar os vários silêncios constrangedores, em que faltam as palavras para dois indivíduos praticamente desconhecidos um ao outro, que além de tudo preservam as mágoas e arrependimentos de um passado mal resolvido. O constrangimento palpável e onipresente permanece, inclusive, nas cenas em que pai e filha começam a timidamente se reconectar: como em qualquer relação familiar marcada por mágoas, os traumas se mostram onipresentes e podem vir à tona a qualquer momento, fazendo com que o espectador tenha poucos momentos de relaxamento durante a sessão.
O roteiro, assinado pelo diretor Pedro Diógenes e por Amanda Pontes, não se furta em nenhum momento de encarar a dura verdade: foi Renato, o adulto, que abandonou Joana. Cabe a ele retomar a confiança da filha. Seus motivos, muito bem explorados pela progressão do longa, são compreensíveis, frutos de escolhas talvez inevitáveis, mas não é possível culpar a garota nem sua mãe pelo afastamento familiar. O roteiro também trata com muito cuidado as motivações de Cristina (Ana Luiza Rios), mãe de Joana, que não tem nenhum motivo para confiar no ex-parceiro, e acaba reagindo ao medo de perder a filha com uma superproteção que, de início, pode parecer exagerada, mas que se torna facilmente compreensível durante a evolução da história.
Universos distintos
Uma das constatações mais dolorosas da história de Joana e Renato não demora a se apresentar em tela: é impossível recuperar o tempo perdido. Mesmo que residam na mesma Fortaleza, a cidade se apresenta aos dois personagens de maneiras muito distintas. Ele, um artista que usufrui de toda a liberdade que a cidade pode oferecer; ela, uma adolescente que raramente sai do ciclo casa/escola/casa dos amigos. É na colisão desses dois universos que mora a chance de reconciliação e de, quem sabe, voltar a fazer parte da vida um do outro. Os traumas de Joana e Renato são frutos do passado, mas a solução para esses conflitos reside no futuro.
A Filha do Palhaço é um filme que, por meio de uma eficaz contextualização de dois indivíduos opostos, através de cenários e situações que conseguem explorar muito bem essa dicotomia, consegue adaptar o gênero “pai e filha” para um cenário genuinamente brasileiro, com a riqueza cultural, o abismo social, os problemas e também as soluções muito particulares ao cenário em que está inserido; mostrando que ainda há muitos pontos de vista relevantes a serem explorados pelas produções do gênero.