É sempre uma experiência muito interessante entender a maneira com que o cinema de outros países aborda temas associados com frequência a produções Hollywoodianas. Tome como exemplo as versões japonesas de Godzilla, personagem criado no japão cujo imaginário popular é muito mais associado às produções megalomaníacas de estúdios dos Estados Unidos. Obras como Shin Godzilla (2016) e Godzilla Minus One (2023), ambas japonesas, oferecem perspectivas que muito diferem do fatalismo e individualismo que impera nas versões estadunidenses dos filmes do monstro. Não seria diferente em Sobreviventes – Depois do Terremoto.
Sobreviventes – Depois do Terremoto é o novo filme do diretor Um Tae-hwa que foi escolhido pela Coreia do Sul para tentar uma vaga na premiação de Melhor Filme Internacional do Oscar 2024. O filme não chegou a avançar para a pré-lista de finalistas da categoria, mas representa bem as capacidades do cinema sul-coreano, em voga desde a impecável campanha do filme Parasita (2019) na premiação de 2020.
Mais um filme de apocalipse?
A história de Sobreviventes se inicia quando um terremoto de proporções inéditas atinge a cidade de Seoul, capital do país, deixando apenas um prédio de pé e transformando seus moradores em pessoas privilegiadas em meio aos sobreviventes da catástrofe. A partir daí, o prédio Hwang Gung passa a representar um microcosmo, com seus próprios jogos políticos, líderes, classes sociais e corrupção.
A evolução dos conflitos dos moradores em sua nova realidade é retratada principalmente pela ótica de Min-sung (Park Seo-joon) e Myung-hwa (Park Bo-young). O jovem casal de classe média, composto por um funcionário público e uma enfermeira, são escolhas efetivas para traduzir as mudanças políticas enfrentadas pelo prédio e seus moradores. Myung-hwa, muito empática e interessada em ajudar as pessoas, entra em conflitos cada vez maiores com seu marido, que traduz em tela muito bem os anseios de uma classe média em ascensão que busca agradar os ricos, mas está muito mais próxima dos pobres do que consegue enxergar.
A representação das classes dominantes aqui fica por conta de Yeong-tak (Lee Byung-hun), eleito delegado do prédio pelos moradores. O líder do condomínio, outrora relutante, lentamente passa a se acostumar com o poder, que exerce de forma cada vez mais autoritária. Com medo de desagradar a chefia e ir parar do lado de fora do condomínio junto às “baratas”, termo que o delegado usa para se referir àqueles que não moram no prédio, Min-sung começa a passar por cima de suas próprias convicções, para desagrado de sua esposa e alguns dos moradores de Hwang Gung.
A metáfora não é inédita e já foi explorada em várias outras obras de ficção, como Snowpiercer (2013), em que toda a dinâmica de sobreviventes do apocalipse acontece dentro de um trem. Filmes e séries que retratam o mundo após um colapso civilizacional também são recorrentes, e a recente adaptação dos jogos The Last of Us para a televisão é um exemplo claro da vitalidade do gênero. É natural que, sob essa ótica, exista desconfiança e cansaço por parte do espectador, mas Sobreviventes não falha em oferecer frescor ao gênero.
O apocalipse longe do ocidente
O frescor de Sobreviventes é percebido desde o início: por mais que se esforce pra se posicionar como um blockbuster, abusando de efeitos visuais e tomadas aéreas que fazem de tudo para ressaltar o valor de produção do longa, fica claro que a história contada pela projeção não segue os moldes niilistas das produções ocidentais. O filme possui sim elementos de antagonismo, sem os quais seria impossível contar uma história do gênero, mas em momento algum se resume a isso.
Através de uma trilha sonora pouco usual ao gênero, alívios cômicos no texto e um núcleo de personagens que nunca deixa de lado a humanidade e a luta para preservar a boa convivência entre vizinhos; Sobreviventes consegue até mesmo encontrar espaço para criticar o crescimento desenfreado de centros urbanos, que compartimentaliza seus moradores em apartamentos cada vez menores e contribui para a diminuição do senso de comunidade.
Por mais que a segunda metade do longa seja mais irregular que a primeira e tente aproximar o filme de thrillers mais convencionais, isso não é suficiente para diminuir o valor de Sobreviventes, que tem potencial para atrair um novo público para o cinema sul-coreano: aquele interessado e acostumado com blockbusters de grande escopo e orçamento.
Confira o trailer