Eu faço playlists anuais, com o que as bandas que acompanho lançaram naquele ano, e na última vez que atualizei a de 2023 percebi que haviam muitos lançamentos de folk, mais especificamente de artistas LGBTQIA+. Como não sei quando isso vai acontecer novamente, resolvi fazer essa lista de artistas do Queer Folk. Vai acontecer em breve, pois só dos artistas que acompanho, consigo fazer uma longa lista do que saiu nos anos recentes, então se você pesquisar vai encontrar inúmeros lançamentos, mas sigamos com a matéria…
Há anos temos visto o aumento das identidades dissidentes dentro da música raiz no mundo todo e no Brasil não foi diferente, o movimento queernejo surgiu em 2019, e em 2021 o primeiro disco do gênero foi lançado (AGROPOC de Gabeu, indicado ao Grammy Latino) e em 2023 tivemos dois álbuns.
Pra quem curte folk e country recomendo acompanhar o FolkdaWorld (em Português) e No Depression (em Inglês) e pra quem se interessar mais especificamente pelo queer folk, recomendo acompanhar o Rainbow Rodeo (também em Inglês), principalmente a newsletter.
Convidei meu amigo Felipe Oliveira, que conheci através do mundo queer country e o acompanha mais de perto que eu, para colaborar com as indicações.
Os maiores destaques do queer folk de 2023: artistas e álbuns
1 – John-Allison Weiss – The Long Way
Começo a lista dos destaques de queer folk com esse disco, pois como diz o adesivo, “eu ouvia John-Allison Weiss quando elu ainda se chamava XXXXX”. John-Allison já compôs pop punk, folk, música eletrônica, country e, de certa maneira, The Long Way mescla tudo isso. O disco abre com a minimalista Dust Storm, voz e guitarra nos introduzindo à sua história “tão cansade de cantar essas músicas velhas, tão cansade de tentar ser alguém”. O álbum segue com canções cheias de elementos eletrônicos, mas ainda um tanto minimalista e atmosférico até chegar no som de “banda completa” de indie rock falando sobre finais e corações partidos. Miss Me e New Day Old Ghost são hits emo. Como eu disse no início, acompanho John-Allison Weiss há anos e, sendo uma pessoa pública, elu compartilhou com os ouvintes suas mudanças de nome, pronome e gênero e acredito que a música que dá nome ao disco é sua reflexão tanto sobre seu caminho até o momento, quanto o longo caminho que elu mal começou.
2 – Jen Cloher – I Am The River, The River Is Me
A primeira música dá a deixa para o que encontraremos no disco todo: uma homenagem às culturas aborígenes e LGBTQIA+. Mana Takatāpui é uma expressão em Maori que significa algo como “direitos queer*” em Português. A letra me faz lembrar de “You Oughta Know” de Alanis Morissette, mas no lugar da agressividade, Mana Takatāpui tem uma melodia suave que gruda na cabeça. O álbum segue assim, com o que eu só consigo descrever como calmo e suave. A voz de Jen Cloher, muitas vezes quase um sussurro, ajuda a dar esse tom. A maioria das músicas têm frases na língua Maori, homenageando o povo indígena da Nova Zelândia e Austrália, do qual Jen Cloher descende. Em Being Human ela fala sobre colonização, que é “um legado genocida” e como ela é “um convidado indesejado em terras roubadas”. Nessa entrevista, Jen Cloher fala sobre o processo de composição do álbum.
*Sei que “queer” é estrangeiro, mas não existe equivalente em Português para esse termo.
3 – H.C. McEntire – Every Acre
Every Acre é um álbum de queer folk turbulento. Ele foi escrito durante a pandemia e, em muitas passagens, percebemos claramente a sensação de isolamento, intensificada pelos relatos de depressão e luto – “o que mais eu preciso perder para abrir espaço?”. Ao pesquisar sobre o disco, vi pessoas comentando sobre o processo de composição de H.C. e sobre ela escrever suas letras em forma de poesia. Eu jamais saberia explicar de onde vem, mas consigo perceber uma diferença e sei que isso tem grande influência na descrição dos sentimentos. Eu tenho dificuldade em não repetir a palavra “intensidade” aqui, mas quando você está em um estado depressivo, você realmente tem a sensação de que tudo, mesmo o que é bom, vem em um volume maior e é isso que vemos nesse álbum. H.C. McEntire consegue alcançar Cada Acre. Se você curte City and Colour, recomendo ouvir Every Acre.
4 – Mya Byrne – Rhinestone Tomboy
“Rhinestone Tomboy” é um disco de queer folk que começa com uma sonoridade que há muito tempo eu não ouvia: aquele country que mistura com rock até você não saber muito bem onde termina um e começa outro. Acho que isso vem do gosto pessoal de Mya Byrne, mas também acho que alguma influência vem do seu envolvimento na cena queercore em uma época onde ela acreditava não haver espaço para pessoas trans dentro da música country.
A segunda parte do disco tem sonoridades folk e, assim como o som, as letras de Rhinestone Tomboy passam por uma grande diversidade: amores, vícios, desesperança, mudanças, mas acredito que o que prevalece é a ideia expressada na música It Don’t Fade, “o Sol não se põe nem nas piores horas”. Alguns chamariam isso de esperança, outros de fé, mas na minha cabeça é uma terceira coisa que eu ainda não sei o nome. O clipe de It Don’t Fade mostra um beijo entre Mya e sua parceira, a também compositora Swan Real, e quando ele foi transmitido pelo canal CMT, se tornou o primeiro beijo entre duas mulheres trans a ser transmitido em uma rede de televisão dos EUA (até onde sabemos).
5 – Gali Galó – Gali Galó
Um dos discos de queer folk mais sonoramente diversos dessa lista, Gali Galó entrega sofrência com diversão. O álbum começa com melodias animadas influenciadas pelo sertanejo e segue com indie folk e acho interessante que podemos ver o quanto a sonoridade influencia a nossa percepção. Nas primeiras músicas vemos a desilusão amorosa de uma maneira bem humorada, já em músicas como “Já Deu” e “Aceita”, a dor é quase palpável.
Mya Byrne disse em entrevista que nós ouvintes damos muito valor ao sofrimento narrado na música folk, e eu fico feliz que em todos os lançamentos dessa lista vemos também alegria, esperança e até catarses. Nem só de tragédia vive a comunidade LGBTQIA+. E por falar em diversidade sonora, acredito que diferente de quase tudo o que costumo ouvir, onde identifico mais um gênero musical que outro, em “Na Frente dos Bois” vemos quantidades iguais de elementos folk e indie e isso faz meu cérebro ter um tilt, além de sintetizar muito bem o álbum.
6 – Zerzil – Queernejo
“Divertido” é a primeira coisa que me vem à cabeça quando penso em Zerzil. O primeiro contato que tive com sua música foi “Garanhão do Vale”, uma versão de “Old Town Road”, de Lil Nas X que ouso dizer: gostei mais que a original. Certamente por essa questão. O bom humor, geralmente o deboche, é muito presente nas narrativas LGBTQIA+ e em Queernejo ele é acompanhado da sonoridade do sertanejo moderno, dando um ar de leveza, necessário quando falamos sobre a vivência queer, que é geralmente envolta de assuntos densos como perseguição e falta de direitos básicos. O disco é recheado de músicas “chiclete”, da sofrência “Ressaca”, passando por “Meu Cafezim” (feat. com Gali Galó e talvez o primeiro feat. de pessoas não binárias na história? Quem souber, me avise), até “Meu Bigode É Grosso” que ainda me faz rir como da primeira vez em que ouvi. Queernejo tem também uma das capas mais bonitas que já vi.
7 – Allison Russell – The Returner
Depois de um debut super pessoal e introspectivo, Allison Russel lançou “The Returner” como uma celebração. É um álbum mais expansivo, mas cheio do que ela já tinha mostrado anteriormente. Melodias agradáveis, coros envolventes e instrumentais impecáveis fazem parte de toda a obra. Mesmo que tópicos de cunho pessoal e social ainda façam parte de suas letras, o acompanhamento musical traz um senso de poder e orgulho, mostrando uma artista que não tem medo de tocar em tópicos sensíveis e seguir de cabeça erguida.
8 – Joy Oladokun – Proof of Life
Como nada na vida acontece sem uma grande dose de contradição, as canções de “Proof of Life” (ou de toda a carreira de Joy Oladokun) versam sobre autoconhecimento, aceitação e como fazer isso abrindo espaço para que outras pessoas também tenham a mesma oportunidade. A ironia é Joy fazer parte de uma pequena lista de artistas que ainda trabalham com Dr. Luke, sendo assinada por ele tanto como artista quanto compositora. Se você conseguir passar por cima desse fato, encontrará um álbum que coloca a mão no seu ombro como um amigo que diz que irá caminhar com você, mesmo sem saber o caminho. Há espaço para questões bem íntimas, mas também questionamentos maiores sobre o mundo. Cheio de participações especiais, os nomes mais surpreendentes nem são os que dividem o microfone com a cantora, como Chris Stapleton e Noah Kahan, e sim por quem está nos bastidores. A lista de compositores e produtores do álbum conta com Mike Elizondo e Dan Wilson, demonstrando progresso e expansão dos horizontes dessa cantora que costumava produzir tudo sozinha no seu home studio.
9 – Izzy Heltai – mostly myself again
Composições de tom confessional não são novidade, principalmente na música alternativa. Detalhar experiências ao máximo pode acabar por trazer uma grande universalidade aos sentimentos, e nesse quesito Izzy Heltai consegue bons feitos. Em mostly myself again, a preocupação com a passagem do tempo perpassa todas as canções de Heltai, que mal tem 30 anos. A preocupação logo se explica: o cantor não pensava que, como uma pessoa trans, chegaria a essa idade e agora precisa entender o que ser adulto significa. Este EP é mais um capítulo dessa sonora trajetória que se desdobra sobre nossos olhos, e ouvidos.
10 – Jaimee Harris – Boomerang Town
Falando em composições confessionais, Jaimee Harris não poupa a caneta em “Boomerang Town”. Suas observações sobre vício, saúde mental e o tradicionalismo das cidades pequenas são honestas e pungentes, assim como suas canções sobre luto e esperança. Esse álbum poderia ter sido lançado nos anos 90, com suas letras e produções bem à moda antiga. Numa era cada vez mais de singles canções curtas, encontrar um trabalho tão coeso e fechado é raro, e dá vontade de apenas se deitar, dar play e deixar ele tocar inteirinho, prestando atenção nas personagens que vão aparecendo e o quanto elas dizem sobre nós e nossas vidas.
11 – Brandy Clark – Brandy Clark
Certamente o lançamento mais mainstream de todos, mas nem por isso um sucesso comercial ou algo do tipo, o que só comprova o quanto os artistas queer ainda são deixados de lado no mundo da música folk/country/Americana. Dar o seu próprio nome para um álbum é uma tentativa comum de mostrar intimidade, e é isso que Brandy Clark faz nesse lançamento. Porém, ainda pouco dela é mostrado. Sabemos que ela é uma ótima compositora, capaz de escrever versos incrivelmente devastadores ao mesmo tempo em que pode te fazer rir com os trocadilhos e piadas mais improváveis. Seu catálogo de canções gravadas por outros artistas não nos deixa mentir. Sabemos que sua voz é agradável e doce, seus outros álbuns falam por si. Mas seu trabalho não entrega muito além disso.
O álbum acaba sendo um grande atestado da sua competência artística, mas com poucas expressões da sua própria personalidade. Nem a produção de Brandi Carlile foi capaz de tirar o teor da “máquina de Nashville” das canções, que não são ruins, mas poderiam estar em outros álbuns de outros cantores.
Bônus: boygenius – the record
Apesar do fato que essa matéria poderia se chamar “Os Melhores Lançamentos do Indie Folk”, eu particularmente não acho que boygenius se encaixe na lista. Digo particularmente, pois “the record” foi mencionado em algumas publicações sobre country, mas de qualquer maneira, fiquem com esse cover lindo de Shania Twain (sem esquecer o cover de The Chicks e a petição que eu começo oficialmente hoje para um cover de Brandi Carlile).
>>”the record” foi eleito melhor álbum do ano pela equipe do Musicult, veja nossa lista completa com os melhores discos de 2023
Curiosidade: no começo de 2021, Mya Byrne postou no Twitter um link da matéria “Your Guide to the Butches of Queer Country”, dei RT comentando “um dia eu escrevo sobre o queernejo”, ela respondeu dizendo que adorariam saber mais sobre o gênero e um tempo depois fiz uma entrevista com Gali Galó, da qual gosto muito, pois deu match: elu tinha uma história pra contar e eu consegui fazer as perguntas certas. Foi publicada em inglês e em português. Eu jamais imaginaria que um dia escreveria sobre esses dois discos no mesmo artigo.
Quem assina:
Livia Pin, que já apareceu por aqui no nosso especial sobre criadoras de conteúdo de música, já que é ela quem comanda o busridenotes, com participação de Felipe Oliveira, professor e escritor, um paulista que fala uai e oxe, segundo ele mesmo. As indicações do Felipe no texto são Allison Russel, Joy Oladokun, Izzy Heltai, Jaimee Harris e Brandy Clark.