Propriedade é um filme sobre vigilância. E faz questão de afirmar isso desde sua primeira cena, que nos mostra uma mulher sendo feita de refém no meio da rua, em plena luz do dia. A escolha do diretor na forma de retratar esse evento deixa muito claras algumas das discussões que o longa pretende discutir: a cena é filmada pelo celular de um transeunte, e nos é apresentada assim mesmo, na vertical.
A crueza, a velocidade, a mão trêmula de quem faz o registro transmite medo, mas também a necessidade de presenciar, e mais que isso: de deixar claro que presenciou, por meio da filmagem e eventual propagação por mídias sociais. O zap – maneira informal que os personagens utilizam pra se referir ao aplicativo WhatsApp – é citado algumas vezes e representa a única forma possível de comunicação, se tornando uma arma dos personagens que nos são apresentados em sequência. São os tempos em que nós vivemos.
Propriedade – enredo do filme
O filme conta a história de uma revolta de trabalhadores que, ao receberem a notícia de que a fazenda em que trabalham e residem será vendida, decidem resistir à ordem do proprietário das terras. Do outro lado desse confronto está Tereza (Malu Galli), esposa do latifundiário, que se enclausura no carro blindado do casal com medo da revolta dos trabalhadores, que se tornam cada vez mais violentos conforme os ânimos se exaltam.
A decisão do diretor Daniel Bandeira em refugiar sua final girl em um carro blindado traduz perfeitamente as inquietudes da história contada: o carro, redoma impenetrável e tecnológica, confere à Tereza a posição ambígua de uma observadora protegida pelos seus privilégios, ao mesmo tempo que a expõe às constantes tentativas dos moradores da fazenda de destruir sua proteção. Chamar Tereza de final girl, inclusive, passa longe de ser um spoiler: Propriedade é um filme de terror, e toma emprestadas diversas convenções do gênero para contar sua história. Tereza está em situação de vulnerabilidade, mas em nenhum momento é tratada pelas lentes com condescendência. É uma mulher branca, rica e completamente desconectada de seus próprios funcionários e seus anseios. Carrega consigo traumas, mas também traumatiza. Isso é motivo suficiente pra que a personagem mereça morrer? Essa questão o filme não responde.
Dos filmes de terror, Propriedade também se apropria do gore, com representações gráficas de tiros, agressões físicas e seus resultados, mostrados para o espectador sem censura. O motivo, entretanto, não é gratuito. Os trabalhadores da fazenda, acostumados mas nunca conformados em viver situação análoga à escravidão, carregam em seus corpos o histórico da violência de classes. Um deles perdeu a voz ao manusear produtos agrícolas tóxicos, outros perderam partes do corpo e alguns perderam a própria vida. “Pagaram com o corpo”, como bem define uma das trabalhadoras em determinado momento do longa. Não lhes parece exagerado cobrar na mesma moeda.
A sensação de claustrofobia não se limita ao interior do carro: a presença constante de celulares, câmeras de segurança e demais tecnologias, presentes no roteiro desde a primeira cena, posicionam Propriedade como um thriller fruto de seu próprio tempo. A ameaça imediata deve ser combatida tanto quanto a possibilidade de que ela perca o contexto e se transforme em outra narrativa. É perigoso que a luta de uma vida inteira se torne um recorte de poucos segundos nos celulares e televisores Brasil afora.
Não há espaço pra maniqueísmo no roteiro, também assinado por Daniel Bandeira. Também não há espaço para vítimas indefesas, menos ainda para vilões caricatos. Em tempos de discussões cada vez mais persistentes e vazias sobre a utilidade da arte, que é posta em cheque o tempo todo enquanto se exige do entretenimento uma postura cada vez mais moralista, é satisfatório ir ao cinema e assistir a um filme que não parece se importar em agradar o espectador, muito menos em prover respostas pras discussões levantadas em tela. Propriedade chega, agride, pergunta e vai embora; cabe ao público tirar suas próprias conclusões.
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