Durante o isolamento social forçado pela pandemia, Luiza Pereira, que ganhou notoriedade no cenário do indie brasileiro com a banda INKY, decidiu se dar uma guitarra de presente (mesmo sem saber tocar na época) e começar a compor. Daí, nasceu “Caos”, depois vieram outras músicas e, enfim, MADRE, o projeto solo da artista, que lançou seu álbum de estreia Vazio Obsceno (Seloki Records) no início de novembro.
Como o nome sugere, Vazio Obsceno é um disco de contrastes, algo que era perceptível antes mesmo de seu lançamento, com os singles que o antecederam: “Caos”, “Transe” e “Sirenes”. Conversei com a Luiza sobre o disco e um dos pontos abordados foi justamente a escolha das primeiras músicas a serem lançadas num projeto que era o recomeço de sua carreira musical depois de um hiato pós-banda.
“‘Caos’ foi a primeira música que eu fiz pra esse disco, uma das primeiras músicas que eu fiz na guitarra, no primeiro mês em que comecei a tocar. E ela tinha esse significado de ser uma marcha fúnebre. No disco, eu falo sobre morte e sobre outras coisas. E “Transe” é um outro lado do disco, um outro tema. Eu achei que eram duas músicas interessantes pra começar a mostrar esse disco. É uma música falando sobre morte (Caos), a outra sobre desejos reprimidos, libido (Transe)”.
Mas é impossível falar do disco de estreia de MADRE sem citar o manifesto anti-digital que a artista divulgou, além do fato de que o álbum ficará nas plataformas de streaming por apenas 6 meses. Depois desse período, só será possível ouvir o álbum em mídias físicas.
Sobre esse manifesto, gerado a partir dos desconfortos da artista em relação a plataformas de streaming, conhecidas por, apesar da facilidade de disseminação, ter reduzido sucesso a número de plays e por não remunerar os artistas de forma justa, ela contou:
“Já faz um tempo que eu tenho me incomodado muito com os streamings e a falta de remuneração dessas plataformas com os artistas, além do posicionamento dessas plataformas quando foram questionadas. Em resposta a um abaixo assinado que vários artistas fizeram ao redor do mundo, o Spotify postou um comunicado que dava a entender, nas palavras deles, de que se você é um artista amador, a culpa não é do Spotify. Eu achei isso um escárnio com quem tá ali na plataforma. Eu venho observando faz tempo e também pesquisando sobre esse mercado digital e quais os efeitos que isso tem trazido para os artistas e para os ouvintes. Aí foi um caminho natural lançar o meu disco aproveitando esse momento pra fazer o manifesto e, de alguma forma, abrir essa conversa que eu acho que é uma conversa que a gente precisa ter. Quando eu soube que as plataformas iam tirar os artistas com menos de 1000 plays por uma questão de espaço, eu pensei ‘se os artistas não são bem remunerados, se eles não são bem-vindos nessas plataformas, acho que temos aqui um problema e tanto’.”
Durante a conversa sobre as plataformas, Luiza lembrou de uma notícia que saiu recentemente: a de que Kate Nash, assim como Lily Allen já fez, anunciou que fará um perfil no Only Fans para custear sua próxima turnê, afirmando que ganharia mais dinheiro com suas fotos nuas do que fazendo música.
“Isso me deixa muito indignada e eu acho que a gente não deve se acostumar com esse tipo de coisa. A gente questiona a precarização em tantos outros meios que a gente também tem que começar a falar sobre isso e experimentar outros caminhos sem ficar com medo de que se não tiver um digital, isso não vai existir. Fazendo uma conta básica, ainda dá pra ser melhor remunerado vendendo merchandising e CD físico”.
Experimentar outros caminhos, inclusive, é um dos pontos do manifesto, e Luiza falou mais sobre essas alternativas e possibilidades que os artistas, especialmente os independentes, têm para continuar existindo sem o digital: além da venda do merchandising, o bom e velho show.
“Show é uma grande experiência. E eu não tô falando só de ter alguma forma de remuneração, mas sim de encontro com o público e de proporcionar que as pessoas que têm algo em comum também se encontrem no mesmo ambiente pra terem experiências juntas, sabe? Você estar lá com o artista que você gosta, assistir um show, conhecer pessoas, conversar, trocar uma ideia com o artista… retomar esse senso de comunidade que é uma coisa que também se perdeu. E para mim, música é sobre isso. Não existe música sem comunidade. Não existe carreira sem fãs. Números não vão encher show, não botam comida na mesa, não vão financiar o seu disco. Então, é importante retomar esse contato pessoal. E eu também acho que pós-pandemia ainda está todo mundo muito carente de experiência física, querendo se encontrar, dar um abraço em alguém, conhecer pessoas novas, conversar… Então, é como retomar uma coisa que já existiu. Eu vivi um pouco isso, então não parece uma coisa também tão assustadora assim”.
E se o assunto é show, quem quiser ver MADRE ao vivo vai ter que esperar um pouquinho, pois a artista disse que divulgará as datas em janeiro, mas, sobre a experiência de se apresentar solo depois de um tempo com banda, ela conta:
“Eu tenho tentado não ter onde me esconder, que eu acho que é o melhor que eu posso fazer pra esse momento e para o disco: estar ali o mais vulnerável possível, tocando minha guitarra, deixando as pessoas me verem fazendo algo novo, começando. E podem esperar um show bem divertido e barulhento, mas é isso: tem que ver ao vivo pra saber.”
Sobre a mudança de tantos anos tocando com banda, nos sintetizadores, e cantando em português para um projeto solo com guitarra, Luiza disse que, apesar das mudanças e de aprender a tocar guitarra durante as composições, tudo aconteceu de forma natural.
“Por incrível que pareça, foi natural pra mim. Eu só não fazia antes na INKY (cantar em português). Então foi legal esse teste de como seria escrever em português. E eu gostei porque escrever na nossa língua mãe tem uma coisa muito direta. Eu acho que, de alguma forma, eu mantenho ali minha personalidade, meu jeito de cantar. Acho que tem coisas que são minhas e que continuarão comigo. Óbvio que tem diferenças e eu também tentei muito não me repetir, não fazer o que eu sabia. Eu sei que as pessoas esperavam que eu estivesse tocando o sintetizador do jeito que eu tocava, mas tocar um instrumento completamente novo e ir por outro caminho era importante pra eu não acabar fazendo as coisas por comodismo, por medo de fazer algo novo e de não agradar. Foi muito bom tirar essa expectativa e realmente recomeçar de um jeito muito cru, pegando um instrumento que eu nem sabia tocar e sem nem saber que eu estava fazendo um disco.”
Com 8 faixas, o que fica claro ao ouvirmos Vazio Obsceno, além dos contrastes e do impacto do manifesto que o antecede, é que o disco é o retrato de uma artista se reinventando durante o período de isolamento social causado pela pandemia.
“Eu componho muito como uma forma de elaborar as coisas que estão acontecendo e observando o meu mundo interior e o que está a minha volta. Então, o meu disco é um reflexo daquele período. Me dei a guitarra de presente em 2021 sem nem saber tocar. Se não fosse a pandemia, eu estaria falando sobre outras coisas.”
Quanto à sonoridade do projeto MADRE e o que trouxe de influências, Luiza também afirma ser tudo muito intuitivo e fluir naturalmente.
“Eu trago muitas referências embutidas, que sempre foram as referências que eu tive, que formam o meu gosto musical na hora de fazer as coisas. Eu sempre escrevi e compus de forma muito intuitiva. São referências que vêm sem querer, sabe? É o meu gosto musical que está ali. Às vezes alguém me fala ‘Ah, isso aqui parece Radiohead’ e é de tanto que eu já ouvi, de tanto que eu gosto, porque eu não tinha a menor ideia de que poderia parecer Radiohead, entendeu? Ainda mais com a guitarra, que eu estava compondo sem nem saber que nota que eu estava tocando. O disco é bem experimental nesse sentido, de ir fazendo intuitivamente, testando as coisas.”
Citando artistas que a influenciaram, voltamos ao tópico do manifesto que fala sobre a relação material e sensorial do ouvinte com o disco, que todo apaixonado por música sabe que faz falta em tempos digitais, como Luiza explicou:
“Consumir a música como um play é algo tão subjetivo e tão descartável que perdeu o valor também. Quando você pega um disco, você vê o encarte, você vê a arte, você lê, você tem as letras e você tem uma outra relação de valor também. Hoje a gente consome música de forma muito desumana, sem entender que existem humanos ali por trás dos números, humanos por trás dos artistas e dos produtores e dos designers… Enfim, todas as pessoas que precisam existir pra gente fazer um disco, lançar uma música.”
E foi pensando nessa relação material que eu não podia terminar a entrevista sem saber quais dos discos que Luiza tem em casa que mais provocaram essas sensações que saem da música e que mais marcaram sua identidade musical. Nesse momento ela puxou da estante, sem demorar muito, mesmo falando que era uma escolha difícil, os discos “Debut”, da Björk, que, segundo ela, é um dos discos que ela mais ouviu na vida, e “Die Mensch-Maschine”, do Kraftwerk, que, inclusive, aparece ao fundo na foto que ilustra a capa dessa matéria.
E pra quem quer ter essa relação com o disco da MADRE, um pouco antes de Vazio Obsceno sair das plataformas, Luiza abrirá uma pré-venda na internet e o disco virá com um zine junto. Já o CD não sairá na internet, será vendido como merch nos shows. Como Luiza mesmo disse, “Tem que ir no show pra comprar o CD, como faziam os antigos”.
Gravado no estúdio Sítio Romã, no interior de São Paulo, o disco foi produzido por Luccas Villela e tem participações de Fabiano Benetton (Odradek) que gravou linhas de guitarra em “Sirenes”, e de Rodrigo Coelho, que tocou Bass VI em todas as faixas do álbum.
Pra saber quando a pré-venda do vinil começa, siga MADRE nas redes sociais da artista e, por enquanto, apenas por 6 meses, ouça o disco nas plataformas.
Ficha técnica de Vazio Obsceno:
- Composição: Luiza Pereira
- Produção Musical: Luccas Villela e Luiza Pereira
- Voz e guitarra: Luiza Pereira
- Baixo e bateria: Luccas Villela
- Bass VI: Rodrigo Coelho
- Sintetizadores: Luiza Pereira e Rodrigo Coelho
- Guitarra 2 em SIRENES: Fabiano Benetton
- Backing Vocals: Alejandra Luciani e Luiza Pereira
- Engenheiros de som: Alejandra Luciani, Lucas Theodoro e Yann Dardenne
- Drum Tech: Rafael Carvalho
- Mix e master: Alejandra Luciani
- Capa: Ana David e João Vieira