É sintomática a maneira com que o cinema e a televisão tentam, a qualquer custo, fingir que a pandemia de Covid-19 não aconteceu. Não é difícil intuir os motivos: filmes de grandes estúdios, com grandes orçamentos e perspectivas de lucro altíssimas não podem se dar ao luxo de tocar numa ferida que talvez ainda esteja viva demais para a maior parte do público. Hollywood, afinal, é uma indústria do entretenimento, e entretenimento se torna muito mais vendável quando proporciona escapismo ao seu público-alvo.
É impossível, entretanto, que a arte fuja completamente de sua tendência a ser utilizada para processar nossos sentimentos mais abstratos, aqueles que insistem em nos fugir quando precisamos que permaneçam, e os que insistem em permanecer quando precisamos que sumam. É justamente essa ferida aberta que Estranho Caminho, longa escrito e dirigido por Guto Parente, se dá ao trabalho de esmiuçar.
Estranho Caminho não é mais uma história de abandono paterno
Exibido no Mubi Fest em São Paulo, Estranho Caminho conta a história de David (Lucas Limeira), um jovem cineasta cearense que, morando há alguns anos em Portugal, precisa voltar à sua cidade natal para exibir seu novo filme em um festival de cinema. Os planos de David são frustrados pelo lockdown imposto pela pandemia de Covid-19, que obriga o festival a ser cancelado, adia o voo de David de volta a Portugal e fecha as portas da pousada em que o jovem estava hospedado, restando ao protagonista enfrentar um dos demônios do passado no Brasil: a relação com seu pai.
Estranho Caminho não é apenas mais uma dentre as tantas histórias de abandono e reencontro paterno a que a cultura pop tem nos submetido nos últimos anos. O longa, gravado ainda durante a pandemia, em 2021, é capaz de encapsular em detalhes doloridos a experiência dos primeiros dias de lockdown: medo, incertezas, instabilidade política, isolamento social e a falta de privacidade do convívio intensificado com aqueles com quem se dividia o lar em março de 2020, mesmo que esse alguém seja você mesmo. São os elementos perfeitos para a construção de um thriller de cinema, e é surpreendente que a oportunidade tenha sido tão pouco aproveitada por realizadores mundo afora.
O thriller, inclusive, se torna o elemento principal do emaranhamento entre a vida de David e sua obra enquanto cineasta. Durante a projeção, somos apresentados a breves trechos que representam o filme dirigido por David, todos de caráter experimental, sem diálogos, com cores que desafiam o limite da forma e um desenvolvimento cada vez mais claustrofóbico. É a arte imitando a vida, e dessa vez a própria vida também é arte.
Mas o maior problema de David não é a pandemia ou o adiamento do festival de cinema, e sim o convívio com Geraldo (Carlos Francisco), o pai que ele preferiu esquecer ao sair do Brasil para morar com a mãe em Portugal. O longa prefere não explicitar os motivos do distanciamento entre pai e filho, mas fica claro ao espectador que nenhum dos dois gostaria de estar vivendo este momento de proximidade forçada.
Claustrofobia
Trata-se de uma metáfora perfeita: a dificuldade em relações familiares é um tema universal, e é essa claustrofobia que, três anos depois, serve de paralelo para a claustrofobia pandêmica que também experimentamos universalmente. Quando menos se espera, é 2020 novamente na sala de cinema, e nos vemos obrigados a enfrentar uma situação incômoda que de outra maneira não seria enfrentada. Respirar não é mais tarefa fácil.
A escolha de um escopo doméstico, desenvolvido nos poucos metros de um velho apartamento em Fortaleza, se mostra a mais adequada para evocar a representação sensorial de um evento como o lockdown. É o total aproveitamento do tempo, do espaço e do audiovisual que só o cinema em sua forma mais autoconsciente é capaz de proporcionar.
Quanto menos grandiloquente um filme se mostra, mais se torna passível à excelência de seus realizadores, algo que só depõe a favor do diretor Guto Parente e de seus protagonistas, Lucas Limeira e Carlos Francisco. Nas próximas décadas, Estranho Caminho poderá ser referenciado como uma representação fiel da mistura de sentimentos evocada pelos primeiros dias da pandemia de Covid-19, muito mais eficiente em conversar com o público do que estatísticas e velhas manchetes jornalísticas. Já seria um saldo positivo se esse fosse o único mérito do filme. Felizmente, muitos outros vêm junto desse.