Não são raras as ocasiões em que o cinema é confrontado com a missão de transmitir ao espectador os horrores de uma história real. Geralmente, tais histórias contam com protagonistas bem definidos; pessoas reais cuja trajetória de vida é retratada nas telas após alguma adaptação. Não por acaso, as cinebiografias nunca perdem popularidade.
Outras histórias do gênero se desenvolvem em cima de uma narrativa menos centralizada, como o já clássico Carandiru, que adota a perspectiva de diversos personagens para tecer um relato preciso sobre a casa de detenção que dá título ao filme.
Mas nenhum desses é o caso de Ninguém Sai Vivo Daqui, filme de André Ristum, que traz para os cinemas a história do Hospital Colônia de Barbacena, uma instituição psiquiátrica de Minas Gerais que serviu de palco para a morte de mais de 60 mil indivíduos estigmatizados como loucos e abandonados para morrer por suas famílias e pelo Estado em um dos dezesseis pavilhões que o compunham.
Real ou Ficção?
Ninguém Sai Vivo Daqui sofre, desde os primeiros instantes, de uma indecisão que acaba limitando o potencial da obra. Um letreiro informa que os indivíduos retratados pela projeção são fictícios, mas que suas histórias são reais. Logo somos apresentados a Elisa (Fernanda Marques), a protagonista a quem cabe o papel de sintetizar, a partir de uma história ficcional, o tratamento desumano oferecido aos internos da instituição cujas marcas maculam a história da psiquiatria brasileira até hoje.
Elisa, desde seu primeiro momento em tela, é apresentada como uma jovem mulher em pleno controle de sua sanidade mental, enviada injustamente por sua família ao Hospital Colônia para ser punida pela recusa a um casamento combinado e pelo filho ilegítimo que carrega em seu ventre, fruto de uma relação escondida. Os olhos da personagem são emprestados ao espectador para que juntos conheçam o Colônia, se desesperem com a situação apresentada e, eventualmente, percam a sanidade juntos.
Somado a isso, a fotografia em preto e branco bastante escura e repleta de ângulos claustrofóbicos; o breve flerte com o sobrenatural e até mesmo o estabelecimento de antagonistas faz com que não restem dúvidas: Ninguém Sai Vivo Daqui é um filme de terror. Por si só, nenhum desses fatores seriam problemáticos. A escolha por uma narrativa que equilibra história real e cinema de gênero é capaz de criar situações das mais aterrorizantes, mas a impressão que fica durante a projeção é que falta ao longa a ousadia de beber de sua fonte de maneira mais destemida.
Holocausto Urbano
A história de Elisa é um amálgama de várias das situações reais apresentadas no livro Holocausto Urbano, da jornalista Daniela Arbex, que detalha o funcionamento do Hospital Colônia, as motivações por trás de sua construção e o impacto trazido pelas décadas de atividade da instituição. Naturalmente, o livro também aproveita para apresentar vários dos indivíduos cujas vidas foram atravessadas pela atuação do Colônia, e contar suas histórias sempre trágicas e de conclusão raramente feliz.
É claro: nenhum filme merece ficar à sombra de seu material de origem, e nenhuma adaptação precisa prestar contas àquilo que a inspirou.
Ninguém Sai Vivo Daqui merece ser analisado de forma independente ao livro de Daniela Arbex, mas basta a mais distraída das leituras para perceber que o roteiro parece temer a descida ao patamar terrível da realidade. Qualquer uma das histórias reais apresentadas no livro-reportagem é mais contundente que a de Elisa. Não coincidentemente, todas são mais trágicas e possuem conclusões menos grandiloquentes. Permanece a todo instante a sensação de que o filme tem medo ou vergonha de apresentar ao público o material que o inspirou. Dessa forma, acaba nem lá, nem cá: não se destaca como ficção nem como dramatização da realidade.
Ninguém Sai Vivo Daqui é um filme com a missão de criar terror em cima de uma ferida aberta da história do nosso país, e suas tentativas são sólidas, sustentadas por um estilo que carrega consigo o melhor do terror nacional. É uma pena que, no final das contas, a história se concentre numa sucessão de quases: é quase terror, quase real, quase impactante e quase assustador.