Desde 2018, os fãs da escritora ucraniana, e naturalizada brasileira, Clarice Lispector, vêm esperando o lançamento de uma das obras mais importantes de sua carreira, “A paixão segundo GH”, para as telas do cinema. A espera finalmente acaba no dia 11 de abril, quando o filme estreará aqui no Brasil.
O filme de A Paixão Segundo GH foi exibido pela primeira vez no 25º Festival do Rio em 13 outubro de 2023. Na sequência, passou pela cidade de São Paulo, na 47ª Mostra Internacional de Cinema, depois foi para a Europa na 53ª edição do Festival de Rotterdam, na Holanda, e em 15 de fevereiro de 2024 estreou em Portugal, com direito a sessão especial esgotada na cidade do Porto.
Aclamado pela crítica, é quase unânime a opinião de quem assistiu: a direção de Luiz Fernando Carvalho (que é também roteirista junto de Melina Dalboni e de Clarice Lispector, é claro) conseguiu transpor a complexidade por trás do monólogo da socialite e artista G. H.
A personagem se depara com os submundos que a sociedade esconde por trás das expectativas, dogmas e demais construções que aniquilam a força do EU, sobretudo quando se é mulher, e ali dá início a um processo de desconstrução, reconstrução e busca pela própria identidade, abafada entre tantas camadas.
Mas é importante colocar aqui que, caso você já tenha lido o livro A Paixao Segundo G.H., é preciso ir com o peito aberto, pois por se tratar de um texto íntimo, no filme ganha percepções muito particulares para cada leitor. Ao tomar forma a partir das escolhas do roteirista, da direção e da atuação, pode construir de maneira distinta o que você imaginava.
É claro que toda adaptação literária para o cinema passa por isso de certo modo, mas por ser um monólogo, a imaginação flui ainda mais nesse infinito particular.
Monólogo e cinema combinam?
Com mais de duas horas de duração, a película não conta com diálogos, tampouco núcleos ou grande diversidade de ambientes. Mas se você está pensando que isso gerou monotonia, pode se tranquilizar, pois se tem uma coisa que esse filme não é, é monótono.
A grandiosidade da atuação de Maria Fernanda Cândido prende o espectador e o faz se manter alinhado às nuances do pensamento da personagem, acompanhando cada reflexão, variação, angústia e tantos outros sentimentos aflorados no decorrer da peça cinematográfica.
O trabalho de corpo, voz, relação com o livro, com a própria Clarice Lispector foram intensos e íntimos, como Cândido relata em entrevista ao portal Adoro Cinema. E pudera. A Paixão segundo GH abre um vórtice que convida o leitor a embarcar no existencialismo e a colocar em prova tudo aquilo que lhe fora ensinado sobre realidade.
Afinal, o que é real quando não sou eu quem faz as escolhas? Quando sequer consigo entender o porquê de estar escolhendo A e não B? (É, preciso me cuidar para não entrar em questionamentos infindáveis e perder o foco desta resenha).
Nunca foi só uma barata
Sim, falei que se tratava de um monólogo, pois só G. H. fala, mas há na trama outras personagens, outras duas que em muito se assemelham: a empregada Janair, que se despedira um dia antes do início do caos mental no qual entrou G.H., e uma barata que coexistia no mesmo quarto.
Tanto a barata quanto Janair eram invisíveis aos olhos da patroa. A barata não deveria existir. A empregada deveria passar despercebida. Usava marrom ou preto, assim como o inseto, assim como os móveis. Era só mais um acessório, um móvel, que tinha função, porém poderia ser facilmente substituído.
Um dia Janair vai embora e devolve a chave do quartinho escondido dos demais luxuosos cômodos do apartamento numa área nobre do Rio de Janeiro. A chave, que para muitos representa independência, para G. H. tornara-se prisão.
Com a chave na mão, agora ela era obrigada a olhar para aquele cômodo que a tirava do pedestal que sua cor e condição financeira a colocaram; a chave a tirara de tudo o que construíra, colocando-a face a face com o ser.
Quem é G. H.? Quem é Janair? Quem é a barata? Há momentos em que se fundem, a momentos em que cada uma ocupa seu lugar. Um telefonema e tudo poderia voltar a ser como era, mas quando essa chave virou, tornou-se impossível voltar ao que se era. O antes fora corrompido.
Não se trata de uma adaptação
Por ser um texto tão íntimo, fica difícil dizer que foi adaptado para o cinema. De acordo com o próprio diretor, a ideia de adaptar passa a impressão de reduzir, encaixotar e definitivamente não é isso o que ele faz com a obra.
A Paixão Segundo GH é um novo trabalho, um filme que é um novo convite para olhar para o texto da autora, com cores, cortes, jogos de cena, tons e volumes de voz, cheiros, sons. É uma obra sinestésica, mexe com os sentidos, com sentimentos, com camadas sociais. Luiz Fernando Carvalho mantém a relação com as entrelinhas da literatura, com o fazer literatura de Clarice e com tudo o que o texto por si só pode oferecer.
A trilha sonora é impecável e acompanha o raciocínio que se desenvolve ao longo dos minutos que correm. Depois esses minutos se transformam em dias e acompanham o espectador depois que os créditos sobem.
Não é fácil de digerir a complexidade e a intensidade, porém, assim como para G. H. a vida mudou ao girar a chave que abria o quarto da “empregada”, essa obra também pode virar uma chave na cabeça de quem a assiste (assim como de quem a lê).
Assista aqui ao trailer do filme A Paixão Segundo GH e leia no Musicult outras críticas cinematográficas