De tempos em tempos, a indústria do cinema decide reaproveitar conceitos bem consolidados dos filmes e da literatura e trazê-los a um contexto diferente. Desde histórias antigas trazidas a tempos modernos até adaptações de clássicos para a cultura de outros países, essa estratégia representa uma via de mão dupla: por um lado, um argumento conceituado e já adorado por audiências do passado pode se mostrar facilmente vendável com as mudanças necessárias. De outro, o peso do clássico sempre estará presente, assim como invariáveis comparações. É o caso de O Primeiro Dia da Minha Vida, novo filme do italiano Paolo Genovese, que estreia nesta quinta-feira, dia 21 de março, no Brasil.
O Primeiro Dia da Minha Vida conta a história de quatro pessoas que, insatisfeitas com o rumo de suas vidas, resolvem, com sucesso, se suicidar. É nesse momento que um indivíduo misterioso e sem nome (Toni Servillo) toma o controle da situação, levando os quatro numa jornada de uma semana em que, nem vivos, mas ainda sem estar definitivamente mortos, tentarão encontrar novos motivos para desistir do suicídio e seguir com suas vidas.
O primeiro dia da minha vida – crítica sem spoilers
A inspiração
Se a sinopse de O Primeiro Dia da Minha Vida parece levemente familiar, é porque o filme toma emprestado o artifício narrativo de A Felicidade Não Se Compra (1946), de Frank Capra, o mais clássico dos filmes de natal estadunidenses, que acompanha um anjo em sua missão de convencer o infeliz protagonista a não se suicidar na noite de natal, e o faz mostrando a ele como um universo paralelo onde ele nunca existiu seria um lugar pior para se viver.
A comparação, infelizmente, é ingrata. “O Primeiro Dia da Minha Vida” não chega nem perto de atingir o mesmo resultado do clássico que, ainda em 1946, desenvolve uma narrativa apinhada de elementos religiosos e moralmente sensíveis que em momento algum parece ter sido tirados de um livro de auto-ajuda ou palestra motivacional.
Uma temática delicada
O Primeiro Dia da Minha Vida acompanha os personagens do filme enquanto lutam com seus problemas individuais e uma saúde mental abalada. São eles Napoleone (Valerio Mastandrea), um coach de palco que não vê mais sentido em sua profissão; Arianna (Margherita Buy), uma policial que carrega o trauma da morte de sua única filha; Emilia (Sara Serraioco), uma ginasta que se torna paraplégica devido a uma queda; e Daniele (Gabriele Cristini), um jovem que é obrigado pelos pais a produzir vídeos humilhantes para as redes sociais.
Por tratar de temas tão sensíveis como saúde mental e suicídio, é esperado que o longa seja capaz de desenvolver tais discussões com desenvoltura e sem apelar para o moralismo e o lugar-comum, mas o que acontece é o oposto: o resultado que vemos em tela se aproxima perigosamente de uma autoparódia. O misto de trilha sonora emocionante, frases de efeito, câmeras lentas e jogos de luzes trazido pelo diretor se aproxima constantemente daquilo que seria uma palestra do próprio Napoleone, o personagem que explora o tropo de coach trapaceiro.
Os raros momentos inspirados do longa, em que a premissa parece valer a pena, são os que exploram a dinâmica entre os personagens. Inicialmente presos uns com os outros contra a própria vontade, os quatro indivíduos começam a empatizar e se preocupar uns com os outros. É a oportunidade que os atores têm de criar identificação com o espectador a partir do pouco que o roteiro oferece, e é agridoce constatar que, se tivessem a oportunidade de trabalhar com um texto mais maduro, essas dinâmicas funcionariam de maneira muito mais efetiva.
Também não fica clara a influência da moral religiosa no universo proposto para o filme: o salvador anônimo vivido por Toni Servillo tem todas as características, habilidades e moralidade pertencentes às inúmeras representações de figuras do cristianismo no cinema. O longa, entretanto, evita a todo momento confirmar a natureza do personagem. É como se o texto de Paolo Genovese não tivesse a confiança necessária para assumir suas influências religiosas, que não seriam um ponto negativo caso resultassem em um filme sólido, seguro de si e da mensagem que deseja passar. Infelizmente, não é o caso.
Assista ao trailer do filme aqui e confira outras críticas sem spoilers no Musicult