Eu, Capitão é o novo filme do diretor italiano Matteo Garrone, que estreia nesta quinta-feira, 29, nos cinemas brasileiros.
Eu, Capitão – Crítica sem spoilers
Todas as histórias já foram contadas. Esse é um ponto de vista frequentemente exposto e estudado quando falamos de literatura, cinema e dramaturgia. Seja na Odisseia de Homero, nas tragédias de Shakespeare ou até mesmo no conceito de Jornada do Herói, exaustivamente discutido sempre que uma nova aventura de heróis e aventureiros garante seu lugar no imaginário da cultura pop.
Se nós, enquanto humanidade, não cansamos de contar as mesmas histórias todos os dias, porque somos contadores obstinados. Avançamos nas técnicas, nos tornamos mais ousados e abordamos pontos de vista que antes não eram tão observados. Eu, Capitão, portanto, conta a mesma odisseia que já ouvimos diversas vezes, mas o heroísmo da vez consiste em apenas sobreviver, tentar garantir direitos humanos básicos e sonhar com um futuro melhor, mesmo que só um pouco. É a jornada do herói no capitalismo tardio.
Uma odisseia contemporânea
Eu, Capitão conta a história de Seydou (Seydou Sarr), um adolescente que vive com sua mãe e irmãs em uma pequena casa em Dacar, no Senegal. Sonhando em proporcionar melhores condições à sua família, o jovem se junta ao seu primo Moussa (Moustapha Fall) para, a partir de pequenos trabalhos, juntar dinheiro o suficiente para viajar ilegalmente à Europa, onde pretendem ganhar fama e enriquecer com a música. Mesmo advertidos pela mãe de Seydou, o senso de responsabilidade com suas famílias e a imagem idílica que os jovens criaram do continente europeu faz com que eles, enfim, partam nessa jornada rumo ao paraíso que Seydou julga conhecer a partir das propagandas que vê na televisão e na internet.
A jornada, é claro, não é nada fácil, e nos lembra a todos os momentos de que nenhum direito humano é garantido à classe trabalhadora. O plano inicial dos garotos, que parecia fácil demais pra ser verdadeiro, passa por diversos percalços, e cabe ao espectador assistir a desconstrução da esperança e da inocência que antes parecia tão natural a estes protagonistas. Nosso papel de testemunha silenciosa é desafiado constantemente, como num filme de terror: a todo momento, a vontade é de advertir Seydou, pedir que ele não confie em determinadas figuras que encontra em seu caminho, e que não tome algumas das decisões que ele, pra nosso desespero, acaba tomando.
A quem interessa contar essa história?
O título original do longa, Io Capitano, e a nacionalidade italiana do diretor Matteo Garrone podem levar o espectador desavisado a se questionar se, de fato, entrou na sessão de cinema correta: afinal, Eu Capitão é um filme italiano ou senegalês? Uma rápida pesquisa traz a resposta: trata-se de uma coprodução entre Itália, França e Bélgica, submetida com sucesso ao prêmio de Melhor Filme Internacional no Oscar 2024 para representar a Itália.
Acontece que essa mesma Itália, ou até mesmo todo o continente europeu, pode ser facilmente interpretada com um dos algozes da história de Seydou e Moussa. Representado pela mídia internacional como um verdadeiro oásis de oportunidades e consumo, é difícil não parar pra refletir se a motivação dos protagonistas ainda existiria se eles tivessem acesso a direitos básicos e conforto ali mesmo em sua terra natal, na cidade de Dacar, Senegal.
Também é difícil não pensar em como essa história seria contada caso tivesse sido idealizada por realizadores senegaleses, retirando dos personagens e de suas motivações a visão eurocêntrica que exige de seus protagonistas pureza, sofrimento e altruísmo para que enfim sejam recompensados pelos seus esforços.
Seria leviano dizer que Eu, Capitão não é um bom filme ou que não sua história não engaja o espectador até o último segundo, quando, atônito, percebe que não adianta torcer para o sucesso de Seydou e Moussa, afinal, eles são personagens, e os verdadeiros afetados pela problemática abordada pelo longa permanecerão anônimos.
Todos os anos, muitas histórias de sofrimento são contadas no cinema, e algumas delas, sem falta, alcançam a glamurosa temporada de premiações. Se é ético ou não que tal reconhecimento seja obtido através de um sofrimento nem sempre íntimo aos seus realizadores, é uma questão que vale a pena ser debatida. Até onde vai a estética da fome? Em um contexto onde a arte imita a vida, é amargo perceber que, cada vez mais, os esforços exigidos têm aumentado, mas as recompensas só diminuem.
Assista aqui o trailer de Eu, Capitão e confira aqui no Musicult outras críticas e indicações de filmes