As Bestas – Filme: Crítica sem spoilers: É muito comum em pessoas de todas as idades o desejo de se aposentar em alguma cidadezinha do campo. Tão comum que o conceito de “fugere urbem”, latim para “fugir da cidade”, se faz presente na literatura e filosofia desde muito cedo em obras fruto do Arcadismo, escola literária europeia que data do século XVIII. Nossos avós queriam vidas mais simples, nossos pais almejavam vidas mais simples, e nós também sonhamos com uma vida mais simples. Muitos de nós, pelo menos.
É natural, portanto, que as artes retratem esse desejo. São inúmeras as músicas, livros e filmes que contam histórias sobre a tão sonhada volta ao campo, com tudo de bom que a natureza e a desaceleração do ritmo das cidades grandes tem a oferecer: é o chamado Bucolismo. Mas este não é o caso de As Bestas.
As Bestas: um bucolismo às avessas
As Bestas, novo filme do diretor espanhol Rodrigo Sorogoyen, procura tratar do bucolismo de seus personagens de maneira pouquíssimo romantizada. O filme conta a história de Antoine (Denis Ménochet) e Olga (Marina Foïs), um casal francês que, após viver toda uma vida de trabalho intelectual e estudos, decide se refugiar em uma pequena aldeia da Galiza, na Espanha, e começar uma nova vida sobrevivendo daquilo que plantam. Este intuito, tratado pelos personagens principais com muita seriedade, não é encarado da mesma forma pelos moradores da vila, que encontram no casal uma ameaça ao progresso que tanto almejam.
A situação se agrava quando todos os moradores são convidados a votar pela instalação de uma usina eólica no vilarejo. Os nativos, seduzidos pelos lucros prometidos pela usina, não pensam duas vezes antes de votar positivamente. Já o casal de forasteiros, que viveram sua juventude longe do trabalho braçal e se dando ao luxo do pensamento filosófico, votam negativamente, alegando todo tipo de impacto ambiental e exploração financeira que a instalação das turbinas trará ao povoado.
O antagonismo entre os moradores da vila e Antoine, apelidado jocosamente por esses de “Francês”, se inicia de modo unilateral: Antoine tenta entender o motivo da animosidade para aplacá-la, por meio da conversa ou simplesmente tentando ignorar e relevar as investidas dos irmãos Xan (Luis Zahera) e Lorenzo (Diego Anido), principais incomodados com a presença do casal. O escalar da situação, entretanto, faz com que se diminuam as intenções diplomáticas de Antoine.
O filme desenvolve um trabalho efetivo em aprofundar discussões que, a princípio, pareceriam óbvias. A história é contada do ponto de vista de Antoine, em circunstâncias onde seria muito fácil dar razão ao personagem principal da história; mas o protagonista, em diversos momentos, dá a entender que não atribui ao homem do campo o mesmo entendimento e raciocínio que atribui a si mesmo. Seriam seus sonhos bucólicos mera vaidade, uma necessidade de se sentir superior aos seus semelhantes?
Quem são as bestas do título?
A primeira cena do filme, uma tomada longa e incômoda que mostra em câmera lenta vários homens tentando domar um cavalo, já diz o que devemos esperar dos personagens e situações retratados em tela. O longa, filmado de maneira crua, com tomadas escuras, cores frias e uma câmera intrusa que insiste em mostrar os personagens de perto, retrata uma batalha de ímpetos.
A identidade das Bestas do título do filme, inclusive, é ambígua: qual dos dois ímpetos é mais bestial? O dos moradores do vilarejo que, ultrajados em ter que se curvar à opinião de dois estrangeiros, resolvem partir pra violência? Ou o de Antoine, que convencido de sua própria inteligência, em momento algum suspeita estar errado sobre uma questão que a princípio nem lhe compete?
Existe alguém realmente feliz em um contexto onde indivíduos passam a vida desejando uma realidade que não possuem, enquanto ignoram os privilégios que lhes pertencem? São questões que o filme não responde diretamente, mas que deixam um gosto amargo na boca ao final da sessão.
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