A última sexta-feira, 29 de Setembro, foi mais do que o dia da semana para sair de casa, encontrar amigos e curtir um som. Aline Rastelli, uma das mentes por trás da produtora ‘A grande Roubada’, reuniu importantes nomes do punk/hardcore para dividirem o palco do Heavy Beer e entregou uma das noites mais incríveis que o Rio de Janeiro presenciou nos últimos tempos. E se eu pudesse escolher uma palavra para definir esse acontecimento, seria conexão.
Uma noite para celebrar os encontros e sentir que estamos em casa, mesmo a quilômetros de distância da nossa cidade natal. Se você é daquelas pessoas que acreditam que o bom e velho punk rock e hardcore nunca sairão de moda, então você iria gostar de estar lá, e pra quem esteve e está lendo essa matéria, um recado: nunca é tarde para ocupar e transgredir, só vamos!
Com um line composto por Desdito, Texuga, Onda Errada e Merda, bandas que incendiaram o Heavy Beer, que fica na Praça da Bandeira – local emblemático no Rio de Janeiro, conhecido tanto por sua importância histórica quanto por seu papel fundamental na cena musical da cidade – Aline Rastelli, que além de atuar n’A Grande Roubada é fundadora da Produtora Submersa, entregou mais uma noite memorável para fãs de guitarrada, troca de suor & punk rock/hardcore.
Aline, que é do interior de Santa Catarina, mesmo recente na cena de produção de eventos, demonstra a preocupação em promover a inclusão de mulheres, artistas pretes e da comunidade LGBTQIAP+ em suas produções.
“Comecei fazendo shows junto com o Raoni na Grande Roubada, uma produtora que ele vem de muito tempo, desde a década de dois mil, e eu queria fazer alguma coisa com alguns amigos, sem depender d’A Grande Roubada, e alguns projetos que não tivessem um alcance tão grande, porque algumas bandas demoram para alcançar o palco do Circo Voador. Então eu criei a Submersa e junto com a Descalabro a gente consegue trazer uma galera de outros estados, e fazer um corre de estúdio com bandas que estão começando. Acabou que a Submersa se tornou uma incubadora e vitrine de bandas menores, como a Klitória que tocou com a gente na Submersa em maio, agora toca com a gente no Circo Voador abrindo para a Crypta. Então são bandas que a gente quer lançar, pra eles se jogarem no mercado, se alçar e conseguirem oportunidades cada vez maiores”
Quando perguntei sobre a sua motivação para trabalhar com produção de eventos de rock, Aline falou sobre o sentimento de pertencimento da cena, a ausência de diversidade, não apenas de representatividade e protagonismo de mulheres, mas também de pessoas trans, LGBT, pessoas não binárias, pretes, indígenas.
“Como uma mulher na cena eu me senti em outra posição, e hoje estando a frente da produção consigo ter um cuidado com a curadoria e colocando mais mulheres no palco, tentar trazer mais mulheres para o público, para que elas se sintam mais seguras e bem-vindas, e também tentar abrir espaço pra galera trabalhar com a gente, precisamos muito de mulheres na produção, fazendo fotografia, bilheteria, som, iluminação, onde elas quiserem estar”.
Falando em representatividade, pude perceber que esse era um sentimento compartilhado pelo público e integrantes de bandas, como a Letícia (minha xará rs.), que falou sobre a história do Garage, localizado na Praça da Bandeira, a poucos metros do Heavy Beer,
“o Garage é um lugar histórico né, da cena e tal, então eu achei muito foda a galerar estar ocupando aqui, nesse lugar clássico que infelizmente estava tomado por muito tempo por um rolê meio punk-nazi, um movimento muito machista, fascista, de homem, e agora ocupada por várias minas na roda, banda de mulheres”.
Assim como Taty Menendez e Ana Couple, artistas visuais, que exaltaram a importância de encontrar amigos, e “assistir bandas como Texuga ao vivo, mandam muito, Desdito, adoro os meninos e a Onda Errada que é ‘Onda certa’ (risos)”, brincou Taty. “Muito importante ver a Texuga, a Klitória no palco, fazia muito tempo que eu não via banda feminina de uma geração que não a minha sabe, isso pra mim é incrível, renovar os votos no hardcore”, completou Ana.
Sobre a presença de mulheres na roda, Malu, baterista e vocalista da Klitória, acrescentou que
“acho que poderia ser mais ainda, poderia ter cada vez mais, principalmente quando tem uma banda de mulher aqui né, então isso acaba chamando o público feminino pra cá, isso é muito importante, sempre ter mulher no line. E não fazer evento só de mulher, tem que ser misturado, fazer misturado. De uns anos pra cá isso tem mudado, aqui é um ambiente um pouco hostil ainda, mas tem casas como a Motim, como o Barricada em Niterói, onde brota muita mina, travesti, viado, tá muito diversa a cena, tá muito bonito. Inclusão é mistura”.
Esse evento não foi apenas sobre música, foi uma noite em que as bandas decidiram abrir um diálogo direto com o público, criando uma conexão única entre palco e plateia. A energia era de tirar o fôlego, e todos sentiram a vibração. Brayner, baterista da Onda Errada, contou que sua maior motivação na banda “é continuar construindo um movimento coletivo com mais músicos da cidade de Niterói e agregar cada vez mais bandas e artistas independentes”. E complementou falando que o repertório escolhido para o show foi estruturado para conversar com a galera que tava na pilha de um punk-HC nervoso como o Merda, “daí tiramos uns skas e jogamos umas músicas novas pra testar e foi sucesso, a galera curtiu e deu pra explodir legal”.
Thaís Catão, guitarrista e vocalista da banda Texuga, que lançou recentemente o EP “Escárnio e Mal dizer”, falou sobre “Raiva”, música que encerrou o show, e que foi precedida por um discurso direcionado ao público:
“o que eu falei é que o que a gente fala enquanto pessoa preta e como a gente se posiciona, e não está aqui pra agradar pessoas brancas, mas sim para perturbar a casa grande, ‘para acordá-los dos seus sonos injustos’, que é o que a Conceição Evaristo fala. Então a gente tem que falar o que a gente pensa, o que a gente acha, a raiva pode ser motora, ela pode alimentar a gente pra poder reagir, poder produzir, crescer, não fique triste, fique puto, é isso”.
Uma das coisas mais notáveis dessa noite foi a presença massiva de mulheres no público, todas à vontade e sentindo-se em casa no espaço. O punk e o hardcore sempre foram cenários predominantemente masculinos, mas essa noite provou que as mulheres têm um lugar de destaque nesse universo também. Elas estavam lá, pulando, cantando e mostrando que firmaram seu território. Foi bonito assistir uma banda com tanta bagagem como Merda, que caminhou pelas décadas, vivenciou a transformação na cena e que resistiu tornando-se influência para esta geração que além de beber da sonoridade, engrossa o caldo com pautas sociais e de gênero, transcendendo as letras e transbordando para um estilo e prática de vida. Vida longa à resistência!
Resenha por: Lety Lopes, que é educadora, produtora, artista e jornalista nas horas vagas.