Em 7 de maio de 2003, era lançado Ventura, terceiro álbum de uma das bandas mais influentes da história da música brasileira, Los Hermanos. O trabalho, que se consolidou, nessas duas décadas, como o mais popular e um dos mais elogiados do grupo, é agora rememorado e celebrado.
Ventura representou um passo central na afirmação das características que definiriam a Los Hermanos, fazendo-a ser amada e odiada com semelhante intensidade. Indo contra tendências mercadológicas da época, o grupo se mostrou corajoso, disposto a arriscar um caminho de novidades e interessantes mesclas musicais.
Depois da tempestade, a Ventura
As questões que trouxeram ao mundo o emblemático Ventura vêm desde o primeiro álbum do grupo: o homônimo Los Hermanos (1999). O grupo — à época, composto por Marcelo Camelo (voz e guitarra), Rodrigo Amarante (voz e guitarra), Patrick Laplan (baixo), Rodrigo Barba (bateria) e Bruno Medina (teclados) — entrou no cenário musical com uma combinação curiosa de ska-punk e colorações brasileiras do samba de roda, mas acabou sendo resumido, em muitos momentos, ao marcante pop-rock “Anna Júlia”.
O sucesso de “Anna Júlia” fez com que a gravadora dos Los Hermanos quisesse repetir sua fórmula, gerando atritos com a banda, que desejava seguir outros rumos criativos. Nesse meio tempo, o baixista Patrick Laplan — importantíssima figura que viria a integrar e produzir diversos nomes de peso da música brasileira, como por exemplo Biquíni Cavadão, Blitz, Medulla e Castello Branco — deixou o grupo por divergências estéticas e se juntou à banda de hardcore Rodox.
Em meio a esse contexto caótico, nasceu o álbum Bloco do Eu Sozinho (2001), o primeiro passo da escolha feita pelo grupo, de buscar a personalidade musical que desejavam. Assim, abriu-se a possibilidade de consolidar essa escolha com o terceiro álbum, intitulado, num primeiro momento, Bonança, como indicativo de plenitude após as tempestades.
Substituído, depois, por Ventura, o nome apontou ainda mais para a felicidade alcançada naquele momento em que a estética da Los Hermanos se firmou e seguiu encontrando fôlego, baseada em discursos sentimentais e passeios pelo rock, pela bossa-nova, pelo samba e pela MPB.
Quem se atreve a dizer do que é feito o Ventura?
Já no início do disco, o Los Hermanos demonstra seu interesse em propor questionamentos músico-culturais. A faixa abre-alas, “Samba a Dois”, é construída como uma provocação bem-humorada àqueles que tentam definir limites para o samba. No lugar de um cavaquinho, vem a guitarra elétrica, e Camelo canta o inconfundível estribilho: “Quem se atreve a me dizer do que é feito o samba?”. E, no swing dançante da canção, a banda desconstrói o samba para reconstruí-lo sob seu próprio olhar, com roupagens de rock alternativo.
Assim, de entrada, o Los Hermanos deixa claras suas intenções de mesclar gêneros musicais e questionar seus limites. Então, após o significativo começo, vem a segunda música do álbum: “O Vencedor“.
A faixa apresenta metais ainda mais protagonistas e dinâmicas envolventes entre melodia e letra. Nela, Camelo canta uma espécie de “triunfo ao avesso”, ao exaltar a importância de aprender o gosto pela derrota, de abandonar a preocupação com a vitória e, assim, poder aproveitar a vida em paz. Desse modo,” O Vencedor” não deixa de lembrar a própria trajetória da banda, que abandonou certas possibilidades de vitória para exercer sua arte com mais liberdade.
O tema da “luta vã” retorna na letra da canção seguinte, Tá Bom. A guitarra marcante, de timbres característicos da Los Hermanos, mantém suas conversas com os teclados de Medina, embalando conselhos a um interlocutor melancólico que sofre por amor.
O amor — tema caríssimo ao grupo — segue sendo abordado em “Último Romance”, quando Rodrigo Amarante nos brinda com sua voz rouca e ao mesmo tempo aveludada. Esta faixa, que está entre as de maior destaque da banda, rendeu os famosos versos “[…] até quem me vê/ Lendo jornal na fila do pão/ Sabe que eu te encontrei”, contando a história de um eu-lírico arrebatado repentinamente pelo amor.
Continuamos ouvindo Amarante, então, com a canção enigmática e cheia de sentidos “Do Sétimo Andar“, carregada pelo ritmo envolvente de guitarras construído ao longo das músicas anteriores.
Diversas interpretações rondam a faixa: uns defendem ser uma releitura do filme Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky, descrevendo uma relação entre mãe e filho; outros dizem haver informações de que a música, antes, seria chamada de “A mãe do mendigo”; há, ainda, a hipótese de que a história fale de um cachorro perdido. Seja como for, a música paira, sustentada por uma melancolia saudosista, em volta dessa perda misteriosa.
Camelo volta a ser a voz do disco em “A Outra”, com a qual emula o exercício “buarqueano” de dar voz a uma mulher. Ela lamenta a traição de seu cônjuge entre bateria e baixo sensíveis, perpassados pela guitarra e metais mansos, consoantes à atmosfera de amargura e tristeza.
Vem, em seguida, “Cara Estranho”, com guitarras particularmente sujas, vocais desafinados e um discurso que critica esse “cara estranho”, caracterizando-o como perdido, insensível e sem lugar no mundo. Embora nunca tenha havido confirmação de Camelo, suas declarações da época levam muitos a supor que a faixa seria direcionada a Alexandre Magno, o Chorão, com quem o músico teve um desentendimento na época.
A sequência é dada por uma faixa-destaque do Ventura: “O Velho e o Moço”. Esta balada de Rodrigo Amarante, que reflete sobre as duas pontas da vida — velhice e juventude—, significativamente está no centro do álbum, dividindo suas duas metades. Ela cresce aos poucos, com guitarras suaves que ganham corpo e volume, somando-se então aos metais. Sua poética letra passa pelas condições, prazeres e desprazeres do velho e do moço, discutindo as possibilidades de antever o futuro e de mudar o passo, caminhando, ao final, para a aceitação da casualidade da vida: “Que o acaso é amigo/ Do meu coração/ Quando falo comigo, quando eu sei ouvir”.
Camelo retorna para a canção seguinte, “Além do Que Se Vê“, que também se constrói em um crescendo. Ela explode, então, em uma polifonia que remete, em certas passagens, às músicas de marcha clássicas das charangas.
“O Pouco Que Sobrou” é uma faixa ímpar dentro do álbum, de tom singularmente sombrio e experimental que dá protagonismo ao baixo e às regiões graves em geral. Os timbres e efeitos geram estranheza e conversam bem com o discurso de total desilusão do eu-lírico.
Então, chega a curiosa música “Conversa de Botas Batidas”, inspirada em uma história real que aconteceu no Centro do Rio de Janeiro, em 25 de setembro de 2002. Nesse dia, um prédio de cinco andares desabou na Rua do Rosário. Após ouvir um violento estalo, quase todos que estavam no edifício conseguiram fugir, mas um casal que estava hospedado no quarto 105 não ouviu os alertas do porteiro.
Três dias após o desastre, foram encontrados, sob os escombros, os corpos do casal que ia constantemente àquele endereço para encontros rápidos e discretos. A mulher era vendedora de seguros e tinha 48 anos, o homem era professor e tinha 71.
Após o ocorrido, revelou-se que ambos eram casados com outras pessoas e tinham suas respectivas famílias. A imprensa não se importou muito com este causo de amor proibido de final trágico. Mas Camelo, felizmente, eternizou o fato com uma canção sensível e precisa: “Veja você, quando é que tudo foi desabar/ A gente corre pra se esconder/ E se amar, se amar até o fim/ Sem saber que o fim já vai chegar”.
O disco volta aos rápidos compassos e guitarra frenética com “Deixa o Verão”, composta e cantada por Amarante, um ska que lembra o primeiro álbum dos Los Hermanos e, embora tenha uma energia muito solar, desenvolve uma sequência de justificativas para a vontade de ficar em casa “que esse sofá tá bom demais”, deixando o verão para mais tarde.
Depois, Camelo volta a se aproximar de Chico Buarque e do samba de guitarras na canção “Do Lado de Dentro”, em que acompanha o despertar de uma mulher que encerra seu relacionamento com um homem autoritário e abre, metaforicamente, uma porta em seu interior.
O clima enérgico vem mais uma vez no ska-rock “Um Par”, de Amarante. A canção trata da relação conturbada e cheia de atritos entre um pai (ou uma mãe) e um filho adolescente, que parecem não conseguir chegar a um acordo de convivência entre si.
E, para fechar o celebrado Ventura, vem a faixa que não é apenas um ponto alto do disco, mas de toda a trajetória da Los Hermanos: “De Onde Vem a Calma“. A letra funciona como uma condensação de toda a atmosfera introspectiva, insegura e solitária que perpassa o desenvolvimento das letras do álbum, bem relacionada às críticas feitas ao modelo de masculinidade baseado em competição, agressividade e autoconfiança extrema.
Muito pelo contrário: entre guitarras de indie rock que deságuam em um solo de sintetizador, Camelo dá voz a esse homem inseguro e sofredor que “não entende de ser valente” e “não sabe ser mais viril”, terminando esperançoso: “E no final, assim, calado, eu sei/ Que vou ser coroado rei de mim”, projetando uma glória futura por se defender quem se é.
Ventura se encerra desse modo, defendendo a liberdade de não se adequar a modelos, o que pode ser lido tanto no plano das letras, quanto dos arranjos e gêneros musicais explorados pela Los Hermanos.
E, após essas duas décadas, fica claro que o grupo, ao aceitar as derrotas sofridas pelo caminho, conquistou sua própria forma de ser vitorioso e, por fim, coroado rei de si.
20 anos de Ventura!!!!!!! Eu amo tanto essa banda, Amo tanto esse disco, amo tanto o Amarante! E amei tanto essa resenha!
Só queria mais uma turnê pra acalmar a saudade.
Resenha super interessante, curti demais!
Bom dia… vou deixar meu questionamento… na música cara estranho, do álbum ventura, como ela pode ser escrita e direcionada ao finado Alexandre Magno??? O álbum contendo a música, foi lançado em fevereiro de 2003, e a fatídica briga entre Chorão e Camelo, ocorreu em julho de 2004, ou seja se houve mesmo rusgas entre os 2 anteriormente, ela já vinha acontecendo há pelo menos 2 anos antes da briga em Recife. Obrigado.