Texto por Guilherme Polonca
Bob Odenkirk completa 60 anos em 2022, mesmo ano em que nos despedimos de Saul Goodman, seu personagem que surgiu em Breaking Bad e ganhou o spin off Better Call Saul.
Igualmente excelentes, a polêmica em torno de qual das duas séries é melhor sempre surge quando falamos sobre o ator, seu personagem ou o criador desse personagem, o roteirista Vince Gilligan. Mas, será que é possível escolher entre uma das duas? É o que a gente vai tentar descobrir neste artigo.
Breaking Bad x Better Call Saul
Better Call Saul, desde seu início, é uma sequência de quebras de expectativa. Quando a série foi anunciada, pouco tempo após o fim de Breaking Bad, muita gente achou excêntrica a escolha de Vince Gilligan em dar prosseguimento ao seu universo a partir da perspectiva de Saul Goodman, afinal, mesmo sendo parte importantíssima da construção do império de Walter White, é um personagem que funciona como alívio cômico.
Ao começar a nova série, carregada de expectativas por conta de Breaking Bad, é normal que muitas pessoas se decepcionem com o novo ritmo que se impõe aos personagens: quem espera ação, acaba encontrando calmaria; quem espera comédia, pode se incomodar com os traços de tragédia que, pouco a pouco, dão o tom da biografia de Jimmy McGill, a figura jovem e problemática que um dia se torna Saul Goodman.
Ao revisitar as duas obras, fica claro se tratar de uma só história que perpassa a vida de vários indivíduos, com momentos, pontos de vista e vieses diferentes.
O Saul Goodman de Breaking Bad
Nosso primeiro encontro com o personagem Saul Goodman acontece na 2ª temporada de Breaking Bad, no episódio que leva o nome de seu bordão: “Better Call Saul” e que começa com uma cena que simula uma esquete de humor: câmera fixa, personagens desajeitados e texto que busca o riso a partir do estranhamento.
Nessa cena, o traficante Badger é preso em flagrante por tentar vender drogas a um policial, e toda a ação acontece em um banco de praça com uma propaganda de Saul Goodman. Após a abertura, somos apresentados a um dos clássicos comerciais de TV do advogado.
Em Breaking Bad, Saul Goodman é tratado desde o começo com desdém. Quando Walter White vê pela primeira vez o escritório exagerado do advogado, sua reação imediata é perguntar a Jesse Pinkman se não seria melhor contratar um advogado de verdade. Jesse responde que, nesse caso, o ideal não seria contratar um advogado criminal, e sim um advogado criminoso.
É assim que somos apresentados a esse personagem e nos acostumamos com a ideia de que Saul Goodman não é levado a sério. Saul é contratado para livrar Badger de uma condenação que colocaria Walter White em perigo, e os fatores que fazem com que o personagem continue na vida de Walter e Jesse parecem meramente circunstanciais, mas não são.
Bob Odenkirk brilha no papel desde o primeiro momento em que aparece em tela. Diante das piores situações, o Saul Goodman que interpreta parece se sentir à vontade para confrontar e fazer piadas frente a agentes da lei e clientes.
De fato, na segunda cena em que aparece na série, Saul Goodman já deixa escapar um pequeno traço da construção de seu personagem que será de profunda importância no futuro: seu verdadeiro sobrenome é McGill. Anos depois, a transformação de Jimmy McGill em Saul Goodman daria origem a um dos mais competentes spin-offs que a televisão já produziu.
O Jimmy de Better Call Saul
A primeira cena de Better Call Saul já mostra que não vamos apenas conhecer a história pregressa de Saul Goodman. Em preto e branco, a série nos apresenta a um Saul bem mais velho, calvo e com um grande bigode escondendo a frustração em seu rosto. O personagem, que agora usa o nome “Gene”, trabalha como gerente de uma loja de fast food em um shopping, contrastando com os dias de glória e ostentação do ex-advogado.
Ainda nessa linha do tempo, ao chegar em casa, o frustrado Gene busca uma fita de vídeo escondida e, preocupado com possíveis olhares de vizinhos pela janela, se põe a assistir antigas gravações. São as propagandas que nos apresentaram ao personagem anos antes, na segunda temporada de Breaking Bad. Em meio à fotografia em preto e branco, os comerciais de Saul Goodman são refletidos em cores vibrantes pelos óculos de Gene.
O Saul pós-Breaking Bad é apenas uma sombra do homem que um dia fora, e fica claro que estamos prestes a presenciar a construção de uma tragédia.
O início de Better Call Saul nos apresenta duas versões do personagem muito diferentes daquela que conhecemos em Breaking Bad: Gene, refugiado em um trabalho entediante e sem perspectiva de retomar as glórias do passado; e o jovem Jimmy McGill, já cheio de truques e planos para subir na vida à custa de pequenos golpes, mas sem o profundo envolvimento com o crime organizado que viria a ter um dia.
Jimmy utiliza a persona descontraída e cheia de respostas rápidas para esconder a falta de dinheiro, pouca credibilidade em sua profissão e a relação complicada com o irmão, um homem mais velho e cheio de problemas, que Jimmy admira e busca conquistar o respeito, mesmo que desconfie que jamais alcançará este objetivo.
É nessa nuance que se esconde o grande trunfo de Better Call Saul: se antes não sabíamos quais eram as motivações por trás do personagem que se apresentava praticamente como uma caricatura, agora sabemos demais. E até nos compadecemos um pouco.
É possível decidir qual é a melhor série?
Spin-offs, frequentemente, são alvo de desconfiança por levantar questões quanto à sua real necessidade. O caso de Breaking Bad e Better Call Saul mostra o quão importantes são as duas obras para este universo, e o quanto elas são interdependentes.
Better Call Saul referencia Breaking Bad o tempo todo, mas é surpreendente perceber a frequência com que o inverso também acontece. Breaking Bad, durante toda sua jornada, nos preparou para absorver tudo o que seu spin-off teria a nos oferecer. Nós é que não sabíamos disso ainda.
Mais do que tentar decidir qual das duas séries é a melhor, assistir as duas em sequência é uma excelente maneira de presenciar a evolução de Vince Gilligan e Peter Gould como roteiristas, produtores e diretores.
Better Call Saul, por ter sua produção iniciada após os vários anos de filmagem de Breaking Bad, é uma série mais segura de si em diversos momentos: não há nela a necessidade de “prometer” grandes desenvolvimentos ao espectador. A ação é parte marcante dos episódios, mas nem de longe a mais importante, e as seis temporadas desenham desde o começo uma história em seus detalhes mais cruciais.
Os núcleos de Better Call Saul evidenciam todo o desenvolvimento de cartéis e grandes esquemas de tráfico de drogas e deixam claro o quão ingênuo era o plano inicial de Walter White, que pretendia fazer algum dinheiro e depois se retirar de cena.
Uma série melhora a outra, sendo a história de Saul responsável por expandir e aprofundar os eventos subsequentes e até mesmo a situação de alguns personagens após o desfecho de Breaking Bad.
Walter White e Saul Goodman são pessoas muito diferentes
Em um dos episódios mais decisivos de Breaking Bad, o enquadramento das câmeras deixa clara uma mensagem que marca a personalidade de Walter White e define todos os passos que guiaram sua trajetória: “Viva Livre ou Morra”.
Durante muito tempo, pensamos se tratar da mesma mentalidade que perpassaria as atitudes de Saul Goodman, mas não é isso que a conclusão de Better Call Saul nos entrega.
Sem entrar em grandes revelações de roteiro, é possível dizer que de todas as quebras de expectativa proporcionadas por Better Call Saul, a última é a mais inesperada. E também a mais emocionante.