Há exatamente um mês, estivemos em duas das 4 noites de shows que rolaram no Hangar 110 em comemoração aos 31 anos do Dead Fish, já que a pandemia atrasou a comemoração dos 30 em 2021. Essa espera talvez tenha aumentado tanto a ansiedade dos fãs, que as 3 noites inicialmente anunciadas ganharam uma extra, e em todas elas os ingressos esgotaram muito rápido.
Foram quatro noites tocando as três décadas da banda separadas pelo repertório dos discos e durante as apresentações, além de acompanhar sua evolução sonora, é impossível desconectar o papel do Dead Fish como uma banda questionadora que ajudou a moldar o posicionamento político de seu público ao longo desses 31 anos, recontando por meio de suas letras parte da história sociopolítica do Brasil, e foi pensando nisso que a gente separou 6 músicas que consideramos essenciais pra entender essa história.
1. MST (Sirva-se, 1997)
Em seu primeiro disco, um dos destaques é “MST”, que além do refrão sobre ocupar, produzir e resistir, traz um verso que explica a importância do movimento e a necessidade da reforma agrária.
O campo brasileiro continua produzindo sangue e assistindo como no passado a um desfile de bandeiras vermelhas entre multidões de miseráveis sob o comando do MST/combater o latifúndio, desapropriar, ocupar e distribuir/as palavras de ordem que resistem ao tempo como resistem a concentração fundiária/0,9% dos produtores detêm mais de 35% das terras/a ganância dessa elite já foi demais
No fim dos anos 90, quando Sirva-se foi lançado, eram recorrentes as matérias jornalísticas sobre o Movimento Sem Terra, fundado em 1984, e que teve mais destaque nesse período entre 1997 e 1999 por conta da Marcha Nacional por Emprego, Justiça e Reforma Agrária, realizada pelo MST um ano após o Massacre de Eldorado dos Carajás, em fevereiro de 1997. Com o objetivo de chegar em Brasília, cerca de 1.300 Sem Terra andaram por diferentes municípios do Brasil.
A mobilização do MST fez com que a mídia criminalizasse o movimento na mente da população brasileira, tanto que até hoje boa parte dos brasileiros pouco sabe sobre o movimento dos trabalhadores rurais, acreditando que o MST apenas invade territórios privados a troco de nada. A prova da desinformação foi a recente polêmica envolvendo o ator Wagner Moura comendo camarão em um alojamento do movimento.
2. Modificar (Sonho Médio, 1998)
“Modificar” narra os acontecimentos após o fim da ditadura militar, mas que, ao contrário do que acreditávamos, não nos levaram a um país livre e mais igualitário de fato, culminando em uma eleição fortemente influenciada pela mídia, que levou Fernando Collor à presidência.
Então veio 88, foi determinado agora sim poderíamos votar, mas um ano depois percebemos o quão estávamos enfraquecidos/Corações e mentes agora guiados por uma tela de TV/Nossa vontade já não existia, pois agíamos como zumbis/Pagamos caro pela ilusão, o moderninho nos enganou e enquanto retia nossa poupança, roubava mais que os ladrões/E o nosso sonho por um dia sermos iguais se foi, foi deixado pra depois.
Lançada em 1998, ano em que Fernando Henrique Cardoso vencia a eleição presidencial, a música não previu o que aconteceria 20 anos depois: um governo com a maior quantidade de militares em cargos de confiança desde a redemocratização.
3. Sonho Médio (Sonho Médio, 1998)
“Roberto Campos é o nosso guru e para sempre seremos liberais”
Em uma crítica ao consumismo desenfreado, é citado o nome de Roberto Campos, economista falecido em 2001.
Campos foi assessor econômico de Getúlio Vargas e começou na vida pública apenas como alguém que defendia o controle estatal na economia, porém, com o tempo, tornou-se um defensor incansável do Liberalismo, modelo econômico baseado no livre mercado e na meritocracia, no qual o Estado tem pouquíssima participação na economia e que tem ganhado cada vez mais força nos últimos anos, com alguns partidos políticos fundados por empresários defendendo este modelo de privatizações.
4. Proprietários do Terceiro Mundo (Afasia, 2000)
Uma canção que explicita o abismo entre riqueza excessiva e pessoas sem o básico para viver, especialmente contrastando o Brasil e países da América Latina com os ditos “1º mundo” em outros continentes.
Lançada em 2000, a música é um grito de esperança pelo fim deste sistema, mas 22 anos depois o que se vê é tudo igual ou pior, já que desde 2020 o cenário pandêmico escancarou ainda mais nossas diferenças sociais. De um lado, cresceu o número de pessoas desempregadas e desabrigadas; de outro, 520 bilionários formam o 1% que concentra 38% de toda a riqueza do mundo, muitos deles apoiando golpes em países sul-americanos para exploração de suas riquezas naturais.
5. Tão Iguais (Zero e Um, 2004)
Introspectiva e coletiva ao mesmo tempo, “Tão Iguais” traz as reflexões de um jovem sobre o desejo de se conhecer, de “ser alguém” e sobre as dificuldades e questionamentos que o crescimento e a consciência trazem sobre tentar ser uma pessoa honesta em meio a um sistema desonesto.
A música cita os casos Araceli e Ana Angélica, dois assassinatos envolvendo famílias influentes do Espírito Santo.
Araceli tinha 8 anos quando foi abusada e assassinada em 1973. Os principais suspeitos, Paulo Helal, Dante de Barros Michelini e seu filho, Dantinho, eram de famílias ligadas ao ramo imobiliário e exerciam forte influência política no estado. Os três foram condenados em 1980, mas absolvidos em 1991, após reexame do processo. A morte de Araceli fez o Congresso Nacional instituir, em 2000, o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Já em 1985, Ana Angélica foi brutalmente assassinada no consultório odontológico em que estagiava. Ela tinha 22 anos na época e era sobrinha do então senador e ex-governador José Inácio Ferreira, o que leva a crer que o assassinato tenha tido motivações políticas.
No final, ambos os casos não foram solucionados de fato, reforçando a ideia da música de que o nosso país tolera absurdos como coisas normais.
6. Gigante e Inseguro (Vitória, 2015)
Em 2013, a população de São Paulo se revoltou com o aumento de R$0,20 na tarifa do transporte público e decidiu ir às ruas. As passeatas tomaram proporções inimagináveis até então e, pouco tempo depois, em meio aos gritos de que “o Gigante acordou”, milhares de brasileiros saíram às ruas para pedir menos impostos, tarifas menores nos transportes, fim de privilégios aos políticos e, de repente, havia até quem pedisse a volta da Ditadura Militar nas manifestações.
De 2013 em diante, o que se viu foi o tal “gigante” se tornar inseguro ou cansado demais para lutar e a letra de “Gigante e Inseguro” fala exatamente sobre os desdobramentos dessas manifestações e o reforço midiático à despolitização da população.
O que transformou o que era sede por mudança nesse discurso sobre Deus e tradição?/Perdão por me prender nesse assunto, mas é um choque você não recordar o quão de ponta-cabeça era o mundo (…)/ Siga em frente com seu conservadorismo e ponha a ordem necessária a este lugar (…)/ Incorporou o ativista do Estado e agora chama o Golpe de revolução/ Copiou, colou essa imagem do passado, deletando todo o sangue pelo chão.
Bônus: os discos Contra Todos (2007) e Ponto Cego (2019)
Separamos neste artigo apenas 6 músicas de uma vasta discografia, pois se fôssemos falar sobre mais músicas, ficaria ainda maior, por isso deixamos de fora os discos Contra Todos e Ponto Cego.
Contra Todos é talvez o mais politizado da segunda década, e traz músicas como “Piada Liberal”, retomando a ideia de “Sonho Médio”, de 1998, e “Tupamaru”, referência ao Tupamaros, grupo guerrilheiro uruguaio que atuou entre 1963 e 1972.
Já Ponto Cego, que saiu um ano depois da eleição de 2018, é um disco conceitual no qual todas as músicas falam o termo que dá nome ao álbum, e foi cirúrgico e necessário para compreender o que levou à última eleição e os desdobramentos que ela poderia trazer (e trouxe), além de dar voz às angústias daqueles que não concordam com a atual política. É um daqueles discos contemporâneos que já nascem clássicos.
—————–
Já é fã do Dead Fish ou não conhece muito a banda e gostou da história de alguma das músicas citadas nesse artigo? Esteja você no primeiro ou no segundo grupo, ouça nossa playlist especial e conheça as faixas e discos citados.